Wévertton Flumignan: Sobre a aplicação das astreintes

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A fixação de astreintes constitui medida fundamental para compelir a parte a cumprir a obrigação na forma determinada pela ordem judicial, evitando-se atrasos em seu cumprimento. Trata-se de mecanismo processual importante para pressionar o devedor a cumprir a obrigação de fazer ou não fazer que lhe foi determinada.

O artigo 537, §1º do CPC é categórico no sentido de que o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, alterar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou mesmo excluí-la, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva, ou ainda se o responsável demonstrar cumprimento parcial superveniente da obrigação ou apresentar justa causa para o descumprimento.

Da leitura desse parágrafo primeiro, depreende-se que o juiz somente poderá modificar multas vincendas, ou seja, aquelas que ainda virão a ser eventualmente aplicadas. Dessa forma, a partir do momento que houve o descumprimento e a incidência de multa, teoricamente não seria possível rever a aplicação dessa penalidade. Entretanto, se o juiz revisasse as multas vencidas de ofício, isso poderia ocasionalmente ser interpretado como venire contra factum proprium, princípio que também é aplicável aos órgãos do Poder Judiciário.

Sabe-se que existe jurisprudência em sentido contrário [1], de que seria possível rever o valor da multa vencida quando esta se torne irrisória, exorbitante ou desnecessária. Entretanto, tal entendimento destoa do que dispõe o CPC e acaba, não raras vezes, beneficiando o devedor com base em uma outra visão do instituto, usualmente sob o argumento de que a decisão que fixa astreinte não preclui e nem faz coisa julgada material.

A intenção do legislador ao permitir a imposição de multas é justamente que a parte cumpra a obrigação que lhe foi imposta judicialmente. Caso contrário, a parte que está obrigada a cumprir a obrigação pode se sentir desestimulada a fazê-lo, uma vez que, posteriormente, o próprio Poder Judiciário poderá até mesmo excluir as multas que lhe foram fixadas.

Em determinadas situações, um devedor mal intencionado poderá optar por não cumprir a ordem judicial apenas por ter ciência de que a multa poderá ser minorada futuramente, ainda que ele não tenha obedecido o comando judicial, causando prejuízos ao credor nos mais diversos aspectos da vida cotidiana.

A fixação de multa por descumprimento judicial é de suma importância nos dias atuais. Trata-se de medida eficaz e adequada para garantir que a parte se sinta compelida a cumprir à determinação judicial, promovendo a segurança jurídica de que a ordem judicial será efetivamente executada. Além disso, a parte final do §4º do artigo 537 é inequívoca no sentido de que a multa persistirá enquanto não for cumprida a decisão que a impôs. Percebe-se, portanto, que a intenção do legislador é clara: penalizar quem deliberadamente descumpre às ordens judiciais, forçando-os a cumpri-las.

Não é incomum, objetivando evitar um suposto enriquecimento ilícito da parte credora, que os valores das astreintes sejam convertidos em perdas e danos, conforme previsto no artigo 499 do CPC, sob o argumento de que este alegado enriquecimento ilícito deturparia o sentido coercitivo da multa estabelecida [2]. Contudo, deve-se ressaltar que o artigo 499 menciona que a conversão da obrigação em perdas e danos ocorrerá somente se o autor requerer ou se for impossível a concessão de uma tutela específica ou a obtenção de uma tutela pelo resultado prático equivalente.

Percebe-se, ao analisar o dispositivo legal, que somente se converterá em perdas e danos se a parte autora requerer, não cabendo tal possibilidade, em princípio, à parte ré. A conversão também poderá ocorrer se a obrigação se tornar impossível ou houver um resultado prático equivalente. Portanto, do texto do artigo, tem-se que não seria possível a conversão em perdas e danos sob o argumento de “enriquecimento ilícito”, nem se a tutela específica não for impossível de ser cumprida e nem de ofício pelo Juízo [3].

Observa-se, desse modo, que a jurisprudência também não é uniforme sobre a aplicação e o modo de aplicar o artigo 499 do CPC. Enquanto alguns tendem a aderir ao que está previsto no dispositivo legal, outros acrescentam novas hipóteses que não estão explicitamente mencionadas ali, com a finalidade de reduzir e até mesmo cancelar as astreintes.

Além disso, a partir do momento em que ocorre a violação da determinação judicial e, consequentemente, há incidência de multa, tal valor deixa de ser uma medida coercitiva para garantir o cumprimento da obrigação, passando a ser uma dívida de valor. Tal entendimento, inclusive, é extraído do próprio §4º do artigo 537, que menciona que a multa será devida desde o dia em que se configurar o descumprimento da decisão e incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado.

Percebe-se, assim, que existe um marco temporal importante. Antes do descumprimento da ordem judicial, as astreintes atuam como um meio coercitivo para garantir o cumprimento da obrigação. Após seu efetivo descumprimento, trata-se de uma dívida de valor, incorporada ao patrimônio do credor. Justamente por essa razão é que, em tese, não seria possível rever multas vencidas ou excluí-las, mas tão somente as multas vincendas.

Em outras palavras, pode-se afirmar que antes do descumprimento da ordem judicial, as astreintes seriam uma mera expectativa de direito por parte do credor em relação ao valor pecuniário. No momento em que o devedor efetivamente não cumpre a determinação judicial, as astreintes passam a ser um direito em si do credor.

Dessa forma, a partir do descumprimento, o valor das astreintes se torna um direito do credor, se incorporando ao seu patrimônio e, além disso, a partir deste momento torna-se possível a aplicação de juros de mora pelo não pagamento pelo devedor.

É sabido que parcela da jurisprudência [4] parte da premissa de que a aplicação de juros de mora sobre as astreintes configuraria bis in idem, visto que consistiria em uma penalização dupla decorrente da demora no cumprimento da obrigação. Para essa doutrina, a incidência de juros de mora acarretaria, assim, em uma dupla punição do devedor pela sua conduta ilícita.

Entretanto, tal premissa parece ser equivocada, pois não observa que a partir do exato momento em que ocorre o descumprimento da obrigação e, consequentemente, há a incidência da multa tem-se puramente uma dívida de valor. Por conseguinte, o atraso no pagamento de uma dívida de valor em sede de cumprimento de sentença naturalmente atrai a incidência de juros de mora [5].

O próprio artigo 397 do CC é enfático neste sentido, ao dispor que o inadimplemento da obrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor. Assim, se houve o inadimplemento da obrigação tem-se uma dívida pecuniária que o devedor é instado a satisfazer. No exato momento em que o devedor descumpriu a determinação judicial ele foi constituído em mora, razão pela qual incide juros de mora no valor das astreintes a partir do seu descumprimento.

No instante que a multa deixa de constranger o devedor para que cumpra a obrigação e passa a representar um débito consolidado, passível até mesmo de ser exigido pelo mecanismo executório, surge uma obrigação de pagar quantia certa, passível de incidência de juros moratórios.

A não incidência de juros de mora a partir do momento que houve o descumprimento da determinação judicial e a fixação de multa favoreceria o devedor, pois este foi cientificado previamente de que o descumprimento acarretaria na dívida de valor.

Ademais, a incidência de juros de mora sobre o valor da multa não configuraria bis in idem também pelo fato de que não se estaria punindo a obrigação de cumprir a determinação judicial, mas sim sancionando a mora do devedor em pagar a dívida monetária constituída.

Percebe-se, portanto, que as alegadas sanções são distintas, não havendo uma punição dupla pelo mesmo fato. Enquanto a multa visa penalizar o devedor que não cumpre a obrigação de fazer ou não fazer, os juros de mora repreendem o devedor que não efetua o pagamento da multa imediatamente após seu descumprimento. Consequentemente, não se trata de bis in idem, mas de fatos distintos.

Conforme evidenciado, a jurisprudência não é uniforme, resultando em um cenário de insegurança jurídica quanto à modificação de multas vencidas, sua conversão em perdas e danos, bem como a incidência ou não de juros de mora nestes valores. Essas circunstâncias frequentemente resultam em decisões divergentes e conflitantes.

De fato, não existe fundamento legal para que haja redução de multas vencidas, conforme dispõe o CPC, e com base no entendimento sustentado por parte da doutrina e jurisprudência. Além disso, a partir do momento em que há o descumprimento da determinação judicial e ocorre a fixação da multa, esta passa a ser uma dívida monetária, implicando na incidência de juros moratórios sobre esse valor. Nesse contexto, não haveria justificativa para a alegação de bis in idem.

A fixação de astreintes é um mecanismo processual fundamental para compelir as partes a cumprirem ordens judiciais. Interpretar os dispositivos legais de modo a flexibilizar o instituto, beneficiando a parte devedora em detrimento da parte credora, pode gerar insegurança jurídica e desestimular o cumprimento de ordens emanadas pelo judiciário. É necessário um alinhamento uniforme da jurisprudência quanto aos diferentes aspectos de aplicação do instituto, a fim de garantir maior segurança e eficácia.

 


[1] Neste sentido: Brasil, STJ, EAREsp 650.536/RJ, relator ministro Raul Araújo, Órgão Julgador: Corte Especial, julgado em 07/04/2021.

[2] Neste sentido: Brasil, TJ-GO. AI 5325002-21.2019.8.09.0000, relator desembargador Orloff Neves Rocha, Órgão Julgador: Primeira Câmara Cível, julgado em: 09/10/2019.

[3] Neste sentido: Brasil, TJ-SP. RI  0007180-93.2016.8.26.0297, relatora juíza Maria Paula Branquinho Pini, Órgão Julgador: Terceira Turma Cível e Criminal, julgado em: 04/08/2017.

[4] Neste sentido: Brasil, TJ-DFT, AI  0715004-69.2020.8.07.0000, relatora desembargadora Fátima Rafael, Órgão Julgador: Terceira Turma Cível, julgado em: 25/11/2020.

[5] Neste sentido: Brasil, TJ-DFT, AI 07046764620218070000, relator desembargador James Eduardo Oliveira, Órgão Julgador: Quarta Turma Cível, julgado em: 09/09/2021.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-set-07/wevertton-flumignan-aplicacao-astreintes