Bruno Motejunas: Contratação nula com a administração pública

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No estudo das relações entre o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário costuma-se estabelecer que eles são ramos da ciência jurídica distintos, mas que “dialogam” entre si.

Isso se dá porque o empregado (inclusive o doméstico) e o trabalhador avulso são segurados obrigatórios da Previdência Social (artigo 11, inciso I, II e V, da Lei 8.213/91). Além disso, algumas das condições em que se desenvolve o pacto laboral, regulado pelo Direito do Trabalho, têm reflexos na esfera previdenciária, como o tempo de serviço (para verificação da carência de certos benefícios e dos requisitos para a aposentadoria), a remuneração auferida (para o cálculo do valor dos benefícios), circunstâncias do trabalho (por exemplo, exposição a agentes insalubres) e eventuais acidentes.

Sob a ótica previdenciária, o conceito de acidente de trabalho, estabelecido nos artigos 19 a 21 da Lei nº 8.213/91, bem como a garantia provisória de emprego prevista no artigo 118 do mesmo diploma legal (apenas para citar alguns exemplos), tem inegável aplicação no Direito Trabalhista.

No entanto, essa relação não é (como regra geral) de interdependência absoluta, já que os conjuntos normativos que as regem são distintos e bem delineados. Isso significa dizer que, em determinadas situações, o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário poderão ter interpretações distintas de um mesmo fato relacionado ao contrato laboral.

Um exemplo disso está nos efeitos da contratação de empregados pela administração pública sem a obediência aos ditames do artigo 37, inciso II e IX, §2º, da Constituição de 1988, que dispõem sobre a exigência de concurso público ou processo seletivo (este último, para os casos de necessidade temporária de excepcional interesse público).

Trata-se de relação que possui um vício formal gravíssimo e insanável, pois descumpre regra fundamental direcionada ao poder público, bem como fere os princípios administrativos constitucionais da legalidade, impessoalidade e moralidade (artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988). Uma mácula “de origem” na admissão do servidor, que não pode ser convalidada posteriormente e cujo resultado deve ser o encerramento imediato da relação laboral.

No entanto, enquanto existente, tal contrato produziu alguns efeitos, já que o trabalho foi prestado e não pode ser “devolvido”. A maioria dessas consequências jurídicas é regulada pelo Direito do Trabalho, mas pode haver também impactos na seara previdenciária. Afinal, quais os direitos desse trabalhador/segurado, já que seu contrato foi declarado nulo? Ele poderá exigir do empregador todas as verbas previstas na legislação trabalhista? Sua carteira de trabalho deve ser anotada? Apesar da nulidade da contratação, ele será considerado segurado obrigatório da Previdência Social e, portanto, terá esse tempo de serviço computado junto ao INSS? Nesse caso, o empregador é obrigado a recolher as contribuições previdenciárias?

Esses são apenas alguns dos questionamentos. Dito isso, vejamos como esses ramos distintos do Direito tratam o tema.

A resposta do Direito do Trabalho, construída pela jurisprudência, está consolidada na Súmula 363 do TST, que diz:

CONTRATO NULO. EFEITOS.
A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS.” (destaques acrescidos)

Sendo assim, conforme entendimento do TST, o único efeito trabalhista gerado pela contratação nula é o pagamento da contraprestação pactuada, em relação às horas efetivamente trabalhadas e não quitadas, respeitado o valor do salário mínimo/hora, bem como dos valores referentes aos depósitos do FGTS do período laborado, por força do que dispõe o artigo 19-A da Lei nº 8.036/90.

Importante destacar que o trabalhador também não terá direito à anotação da carteira de trabalho, considerando o vício de sua admissão. Apesar de não constar expressamente na citada Súmula 363, tal entendimento está pacificado no TST, como se observa no seguinte acórdão:

“RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO ANTES DO ADVENTO DA LEI 13.015/2014. PROSSEGUIMENTO DA ANÁLISE DO RECURSO POR DETERMINAÇÃO DE DECISÃO DO STF. CONTRATO NULO. AUSÊNCIA DE CONCURSO PÚBLICO. EFEITOS JURÍDICOS. ANOTAÇÃO DA CTPS. SÚMULA 363 DO TST. Nos termos da Súmula 363 desta Corte, a contratação de servidor público, após a CF de 1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS. Desse modo, a decisão regional que, conquanto tenha reconhecido a nulidade do contrato por ausência de concurso público, condenou o reclamado à anotação do contrato na CTPS da autora, não se compatibiliza com a sedimentada jurisprudência desta Corte, consubstanciada na Súmula 363. Recurso de revista conhecido e provido” (RR-59200-83.2009.5.22.0001, 6ª Turma, relator ministro Augusto Cesar Leite de Carvalho, DEJT 17/3/2023). (destaques acrescidos)

Partindo dessa premissa, ou seja, de que o trabalhador não tem direito ao registro na carteira profissional, documento em que deve constar, de forma obrigatória, todas as relações de emprego que ele possui(u) (art. 13 e 29 da CLT), fica a dúvida se esse tempo de trabalho será reconhecido perante a Previdência. Afinal, a carteira é de “Trabalho e Previdência Social” (CTPS) e tem como uma de suas finalidades comprovar a relação laboral perante a Previdência (artigo 29, §2º, alínea “d”, da CLT). Então, se a CTPS não será anotada, como poderia o trabalhador ser reconhecido como segurado, no que se refere a esse contrato?

A solução encontra-se justamente na autonomia entre o Direito Previdenciário e o Direito do Trabalho, ainda que eles lidem com situações fáticas em comum. Como visto, o empregado é um segurado obrigatório, sendo que a própria lei previdenciária estabelece o seu conceito legal, no artigo 11, inciso I, da Lei 8.213/91 [1]. Ainda que se trate de repetição da definição prevista na esfera trabalhista (artigos 2º e 3º da CLT e algumas leis especiais), fica clara a intenção do legislador em destacar que o importante não é a existência de registro na CTPS, mas a efetiva prestação de serviço como empregado. Prevalece, portanto, a ideia do “contrato-realidade”, comumente utilizada na esfera trabalhista, não existindo qualquer ressalva quanto à validade da forma de admissão.

Em outras palavras, independente da anotação da CTPS, caracterizada a relação de emprego com a administração pública, o trabalhador é considerado, para efeitos previdenciários, como um segurado obrigatório. Assim, apesar de não ter o registro do pacto na carteira de trabalho, demonstrada a relação de emprego por outros meios [2], ele terá direito à contagem do tempo de serviço e gozará da respectiva cobertura previdenciária.

Esse entendimento vem se consolidando na jurisprudência da Justiça Federal, como podemos ver no Tema 209, da TNU (Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais):

“O labor prestado à Administração Pública, sob contratação reputada nula pela falta de realização de prévio concurso público, produz efeitos previdenciários, desde que ausente simulação ou fraude na investidura ou contratação, tendo em vista que a relação jurídica previdenciária inerente ao RGPS, na modalidade de segurado empregado, é relativamente independente da relação jurídica de trabalho a ela subjacente.” (acórdão publicado em 23/09/2019) [3]. (destaques acrescidos)

Conclui-se, portanto, que apesar de ter o contrato com a administração pública declarado nulo o empregado tem direito ao reconhecimento do tempo de serviço/contribuição e todos os benefícios previdenciários daí decorrentes, inclusive a aposentadoria. De igual modo, o fato de não haver recolhimentos previdenciários não deve ser empecilho à declaração da condição de segurado do trabalhador, já que tal obrigação é responsabilidade do empregador, restando à União promover (em ação posterior ao reconhecimento do tempo de serviço do trabalhador) a cobrança do ente público contratante, respeitado o prazo prescricional.

 

 


Referências
CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil de 1988. [Em linha]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. [Consult. 8 maio 2023].

DECRETO-LEI nº 5.442, de 1.mai.1943. Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452compilado.htm. [Consult. 08 maio 2023].

LEI no 8.213, de 24 de julho de 1991. [Em linha]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9984.htm. [Consult. 08 maio 2023].

 


[1] Art. 11. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas:[2] Entre esses meios está a própria sentença trabalhista, que reconheceu a nulidade da contratação. No entanto, é importante frisar que nesses casos a jurisprudência do STJ estabelece que, para servir como início de prova, a sentença trabalhista deve estar fundada em elementos capazes de demonstrar o exercício da atividade laborativa, durante o período que se pretende ter reconhecido na ação previdenciária” (AgInt no AREsp 1405520/SP, rel. ministro SÉRGIO KUKINA, 1ª TURMA, julgado em 7/11/2019, DJe 12/11/2019)).

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-ago-13/bruno-motejunas-contratacao-nula-administracao-publica