Daniel Borges: Desenvolvimento sustentável ao patrimônio

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O conceito de sustentabilidade estabeleceu um novo paradigma para a discussão dos temas ambientais, aliando a proteção ambiental ao desenvolvimento econômico, que tradicionalmente eram compreendidos como opostos. O objetivo central do instituto é garantir a equidade intergeracional, ou seja, que tanto as gerações presentes quanto as futuras tenham igualmente o direito de usufruir dos bens ambientais [1].

Em se tratando de desenvolvimento sustentável, é incomum identificar uma abordagem que aplique o conceito ao patrimônio cultural, de sorte que se enreda certo antagonismo nessa relação, pondo, muitas vezes, em lados opostos a proteção ao meio ambiente cultural e o desenvolvimento econômico. Muito embora a conceptualização de sustentabilidade, preponderantemente, venha sendo atrelada ao meio natural, esse conceito não se descola de outros meios  artificial, cultural, do trabalho, digital  [2].

Nesse sentido, cabe questionar a possibilidade de adequação conceitual  do termo sustentabilidade  ao meio ambiente cultural, isso porque, dada à sua incipiente aplicação, a sua amplitude ainda é indeterminada. Compõe esse tipo de meio ambiente o patrimônio cultural de um povo, que, para o direito brasileiro, no artigo 215, constitui-se em “[…] bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” [3].

Dessa maneira, esse meio representa a conexão mais forte que um povo pode ter com um lugar, por representar a sua história, sua cultura, seus saberes e suas formas de manifestação, trata-se da materialização de sua identidade e autenticidade.

Por conta da variedade de bens que integram o meio ambiente cultural, a sua conjuntura patrimonial pode ser dividida em material  relacionado aos bens móveis e aos imóveis  e imaterial  envolve saberes, celebrações, formas de expressão e lugares onde se concentram práticas culturais coletivas. O patrimônio cultural edificado, que integra o patrimônio cultural material, abarca tanto as edificações individualmente consideradas, quanto os sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

A análise da sustentabilidade do patrimônio cultural edificado é fundamental, especialmente porque os bens culturais também são dotados de valor econômico, o que faz erigir a preocupação em relação ao uso sustentável desses bens [4]. Da mesma forma que os recursos naturais podem ser utilizados em favor do desenvolvimento, os bens culturais também podem ser utilizados para gerar riqueza, desde que estejam passíveis de preservação e operacionalização sociorresponsável.

Justamente por conta dessa percepção, diferentemente do que ocorreu no passado, a partir do século 21, tornou-se indeclinável incluir os valores econômicos e ambientais na análise do patrimônio cultural [5]. Nesse sentido, “[…] o património cultural é um recurso insubstituível que pode melhorar o capital social, aumentar o crescimento econômico e assegurar a sustentabilidade ambiental” [6]. Sendo assim, diversas preocupações que recaem sobre o meio ambiente natural também são pertinentes para o meio ambiente cultural, notadamente em relação ao uso predatório desses bens, bem como à exclusão das camadas mais pobres da população do seu gozo.

Para que haja o uso equânime desse patrimônio, é fulcral o encorajamento ao seu uso múltiplo e sociorresponsável. Dessa maneira, é possível mesclar atividades comerciais a empreendimentos residenciais, tanto de alto padrão quanto daqueles destinados à habitação social. Assim, a sustentabilidade do patrimônio cultural não está restrita à sua preservação [7], mas também envolve a sua destinação. Para tanto, para adequar o bem às necessidades contemporâneas, deve-se permitir que ele seja adaptado às novas demandas e aos padrões de segurança e de acessibilidade. Por essa razão, Portugal prevê a aplicação do Princípio da Proteção do Existente ao seu patrimônio edificado.

“Artigo 4º, 1 – A atuação sobre o edificado existente deve sempre integrar a preocupação de uma adequada preservação e valorização da preexistência, bem como a sua conjugação com a melhoria do desempenho, que deve sempre orientar qualquer intervenção de reabilitação.” [8]

Percebe-se a preocupação da legislação portuguesa em associar a preservação à melhoria do desempenho, pois ter a preservação a qualquer custo como objetivo protetivo é incompatível com o desenvolvimento sustentável do patrimônio cultural. De igual modo, pode-se afirmar que a proteção adequada da natureza não pode ser confundida com a sua inviolabilidade. Isso posto, da mesma forma que a proteção ao meio ambiente natural não se pode constituir em um “culto da vida silvestre” [9]; o uso adequado dos bens culturais perpassa pela aproximação entre a preservação do patrimônio e o seu uso econômico.

Aquilo que aqui se convencionou chamar de “sustentabilidade do patrimônio cultural” tem uma acepção ampla, abrangendo todos os aspectos relacionados ao meio ambiente cultural. Nesse sentido, devem-se incorporar técnicas de proteção à natureza a esses bens, ao mesmo tempo em que são gerados impactos sociais e econômicos positivos. Dentre as possibilidades que se apresentam para alcançar a sustentabilidade do patrimônio cultural, um modelo, apesar de desafiador, já vem sendo largamente utilizado no mundo [10]: o retrofit [11].

Trata-se o retrofit de uma palavra da língua inglesa, utilizada para designar as intervenções realizadas em um prédio antigo para que seu uso possa atender às necessidades contemporâneas por meio da utilização de novas técnicas e padrões construtivos. Outras denominações podem ser associadas a essa técnica, quais sejam: reutilização adaptável, reuso, remodelação, requalificação, adaptação, conversão, reabilitação ou renovação.

Como uma interseção entre a proteção aos meios ambientes natural e cultural, é possível identificar práticas sustentáveis que são adotadas nos projetos de retrofit. Como exemplos disso, têm-se: o reuso da água; a introdução de painéis para a produção de energia solar; a seleção de materiais duráveis que utilizem menos recursos naturais em sua produção; entre outras iniciativas [12].

Mesmo que um projeto desconsidere o uso de tecnologias sustentáveis, a reabilitação de edifícios antigos, por si só, já traz impactos positivos ao meio ambiente natural. Primeiramente, porque, no geral, demanda menos insumos do que construir partindo do zero. Além disso, por conta das limitações tecnológicas da época de construção dos edifícios antigos, os recursos naturais precisavam ser mais bem utilizados, a exemplo do uso da ventilação natural  em lugar dos climatizadores de ar  e da iluminação natural  em vez de lâmpadas , reduzindo os gastos energéticos.

Além disso, o reaproveitamento de edifícios antigos ainda pode representar um ganho social e urbanístico, pois, no processo de crescimento das cidades, existe um padrão de ocupação nas suas bordas em detrimento das áreas centrais, o que gera um impacto negativo, tanto para a população mais pobre quanto para o erário [13].

As estruturas urbanas já implementadas nas áreas centrais, como transporte público, malha viária, iluminação e saneamento básico acabam sendo subutilizadas, enquanto novas construções nas zonas periféricas, muitas vezes, carecem dessa infraestrutura. Assim, ou as pessoas que residem nessas áreas não terão acesso aos serviços públicos básicos, ou o erário terá que arcar com altos custos para a sua implementação.

A ocupação de imóveis antigos nas áreas centrais ainda auxilia a redução do déficit habitacional nas grandes cidades, pois muitos imóveis dotados de valor histórico e cultural estão desocupados e poderiam ser revertidos em moradias populares. Complementando os projetos de habitação social, a inauguração de empreendimentos de alto padrão, a diversificação do comércio e a implementação de hotéis permitem o aumento do fluxo de recursos financeiros, trazendo novos investimentos e a criação de novos empregos, conferindo vitalidade à essas regiões. Esse conjunto de fatores contribui com a sustentabilidade cultural do patrimônio, sendo fundamental para a sua preservação.

Por essa razão, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), por meio da portaria nº 375/2018, reconheceu a necessidade de se garantir a sustentabilidade ambiental, social e econômica do patrimônio edificado (artigo 55).

Artigo 55. As ações e atividades de Conservação, buscando contribuir para a sustentabilidade dos bens protegidos, devem:
[…]

III – Fomentar os usos tradicionais, o uso habitacional e demais usos que apoiem e incentivem a permanência, nas imediações do bem, da população em suas rotinas diárias; e
IV – Agregar soluções que visem à eficiência energética, à diminuição da geração de resíduos e ao uso de materiais e técnicas que minimizem o impacto ao meio ambiente.”

Conforme a normativa do órgão, apesar de os projetos de conservação terem como elemento central a preservação dos imóveis, não podem deixar de incluir ações que garantam a sua sustentabilidade.

Diante do exposto, conclui-se que não apenas é possível, mas também recomendado, aplicar o conceito de desenvolvimento sustentável ao patrimônio cultural. Nesse sentido, destaca-se que gerir o patrimônio cultural edificado de maneira sustentável é uma tendência no mundo contemporâneo, porquanto se trata de uma forma de conciliar a sua proteção com o desenvolvimento social, econômico e a preservação do meio ambiente natural. Apenas assim poderá ser preservado para as próximas gerações.

 


[2] FIORILLO, Celso Antonio P. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 20.ed. São Paulo: Saraiva, 2020. 

[3] BRASIL. Constituição Federal. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

[7] Apesar de os termos preservação e conservação terem acepções distintas para o Direito Ambiental, elas não serão apresentadas no presente artigo. Optou-se por utilizar o termo “preservação” genericamente, por ser o mais usual quando se quer referir à integridade dos bens culturais.

[9] ALIER, Joan Martínez. O Ecologismo dos Pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto, 2009. p. 243.

[11] PEREIRA, op. cit., p. 5.

[12] Ibidem.

[13] PINHEIRO, Filipa Serôdio. Novos usos de edifícios como forma de reabilitação urbana. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito Geral) – Universidade Católica Portuguesa. Coimbra, Porto, 2015.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-ago-05/daniel-borges-desenvolvimento-sustentavel-patrimonio