Hugo Uelze: Hely Lopes Meirelles e a reforma tributária

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A célere e esmagadora maioria na aprovação da PEC 45/19 pela Câmara dos Deputados não parece refletir a exata dimensão da “reforma simplificada”, tampouco os riscos ao pacto federativo [1] e, mesmo, a franca possibilidade de manutenção das atuais distorções [2].

O, até certo ponto, louvável cuidado com efeitos adversos se transforma em alerta em face do longoprazo de transição de 50 anos, previsto no ADCT e alguns outros prazos de implementação de dois a dez anos” [3].

A tarefa de gerir “expectativas tão antagônicas, quanto as da União, dos estados, dos municípios e do contribuinte […], será, na prática, um teste de difícil solução e talvez a reforma […] saia do papel apenas para manter as coisas como estão” [4].

Nesse sentido, como “lidar com as sabidas dificuldades que advirão da preservação atávica da cobrança de parte do IVA em nível subnacional. Teria sido muito melhor a solução de um IVA único administrado nacionalmente” [5], escolha mais apta a promoção da segurança jurídica e a proteção da confiança do contribuinte [6].

De todo modo, não é dado à reforma tributária desconsiderar cláusulas pétreas como a propriedade, o que, aliás, permite traçar um paralelo entre a tributação [7] e a desapropriação [8], pois ambas excetuam àquele conceito constitucional [9].

Aqui, é oportuno recordar Hely Lopes Meirelles que ao tratar da possibilidade de desapropriação dos bens públicos “desde que haja autorização legislativa […] e se observe a hierarquia política entre essas entidades” [10].

A federação, outra cláusula pétrea, exige igualdade entre as “ordens jurídicas parciais, central […] e periféricas” [11], todavia, poder-se-ia argumentar que existem situações nas quais “[…] o interesse mais abrangente deve prevalecer em detrimento do menos abrangente [supremacia dos interesses primários sobre os secundários [12] ], para que o Estado brasileiro cumpra seus fins” [13].

Nesse sentido, o IVA nacional poderia propiciar maior neutralidade ao conjunto de atividades econômicas [14], aspecto, aliás, corroborado pelas diferentes distorções concorrenciais hoje existentes e que aguardam por lei complementar desde a EC 42/2003 [15].

A EC 42/2003 ao tratar da “competência para definir os setores de atividade econômica que recolheriam o PIS e a Cofins no regime da não-cumulatividade […]” [16], causou mais uma grande controvérsia sistêmica [17], pois sob o pretexto de conferir segurança e uniformidade ao tema a RFB [18] desconsiderou o quanto decidido pelo STJ no REsp repetitivo 1.221.170/PR.

O IVA dual, multifásico e não cumulativo [IPI, PIS/ Cofins e ICMS] se mostra um modelo esgotado, com problemas de fiscalização e alto custo de compliance [19], além de inadequado à economia digital face à ideia de que “apenas os insumos que se incorporam fisicamente ao produto de saída são passíveis de creditamento” [20].

O IVA nacional, observado o padrão “português (europeu)”, poderia trazer uma “maior harmonização internacional”, inclusive no que tange a outros países da América do Sul, em especial do Mercosul, além de um maior “controle da concorrência interestadual” [21].

O “Confronto do IPI-ICMS-ISS” [22] que durante a economia fordista [23], podia ser equacionado pelo critério das obrigações de dar e fazer [24] ou, então, pela fórmula: “‘Fazer para dar’, ‘não é fazer’, é ‘dar'” [25] também demonstrar o esgotamento daquele modelo inclusive frente a economia digital.

É que não se pode (re)pensar o sistema tributário através dos modelos do capitalismo pesado [26], tampouco utilizar a lei complementar [27] como panaceia para todos os males estruturais, o que contribui para a nítida sobrecarga do Poder Judiciário [28].

Assim, seria oportuno os benefícios estruturais da “tributação pelo valor agregado” sem os conflitos do modelo IPI-ICMS-ISS que “dá margem a diversos conflitos por sobreposição de âmbitos de incidência” [29], além de gerar distorções econômico-concorrenciais [30].

Tal descompasso, reitere-se, se vê acentuado pela economia digital, pois uma coisa é tributar atividade “‘pesada’, ‘volumosa’, ou […] ‘sólida” [31] e outra, bem diferente, é alcançar as riquezas fluídas e mutáveis, como bens imateriais e a cessão provisória de direitos [artigo 156-A, §1º e I da PEC 45/19].

A lógica e dinâmica da economia digital leva primeiro a pensar na capacidade contributiva objetiva [32], pois a circulação de riqueza, não exige mais necessariamente “Movimentação, com mudança de patrimônio” [33], tal como se vê no caso dos “aplicativos de transporte” [34] e do streaming: “disponibilização provisória de conteúdo de som e de imagem por meio da internet” [35].

Já o “fornecimento transnacional de bens e serviços digitais” [36], evidencia outra coisa, o problema global da “erosão da base tributável” e “perda da força arrecadatória” do IR [37], de competência da União, o que, então, favoreceria o IVA dual (IBS x CBS) [38].

Os artigos 156-A, caput, §1º, I e 195, V, na atual redação da PEC 45/19, mantém a sobreposição de incidências, pois, impropriamente remetem à lei complementar a tarefa de conceituar regra de competência, isto é, “descrever todos os elementos essenciais da norma jurídica tributária” [39].

A crítica ao uso excessivo das leis complementares recebe abalizada resposta de Paulo Caliendo, senão vejamos:

“O argumento do respeito ao federalismo pelo uso de leis complementares não resiste a uma análise detida. As diferentes opiniões sobre as funções das leis complementares (funções dicotômicas e tricotômicas); se estas possuem função harmonizadora meramente ou unificadoras; até onde vão os limites de suas alterações e o mais importante, sobre a adequação entre os dispositivos das leis complementares e o conceito ‘implícito’ ou expresso na Constituição geram imensa preocupação jurídica” [40];

O apego à “lei complementar”, portanto, não resolve os dilemas federativos, tampouco as controvérsias quanto à tributação plurifásica, mas tão só evidencia a inadequação do atual modelo cuja “complexidade é diretamente responsável por um volume de contencioso judicial que não tem paralelo no mundo” [41].

A reforma tributária, portanto, exige uma mudança cultural, é preciso romper com velhos hábitos  por mais atraentes que sejam , como o apego à “lei complementar” e a também atávica busca da neutralidade fiscal através da não cumulatividade.

A solução do imbróglio tributário exige paciência e responsabilidade, pois envolve opções sujeitas a limites  inclusive operacionais , e consequências presentes e futuras, para que se evite o aumento da carga fiscal de cerca de 32% do PIB, mas também repentinas perdas arrecadatórias [42], o que poderia comprometer o importante papel das diferentes esferas estatais.

Posto isso, em atenção aos interesses de toda a sociedade, parece mais adequada a criação de um IVA nacional e monofásico, tão só de competência dos estados, DF e municípios, o que afastaria conflitos de incidência com a União  faceta útil a harmonia federativa , instituído em bases amplas como reclama a economia digital, cuja sujeição à alíquotas seletivas — e não um novo tributo [43] , tão só ocorreria para corrigir eventuais distorções concorrenciais, problema, todavia, mitigado pela superação do modelo de IVA plurifásico, cujas controvérsias acerca do aproveitamento de créditos, historicamente, não se viram resolvidas por “lei complementar”, o que, no entanto, restou desconsiderado pelo texto atual da PEC 45/19, daí o flagrante risco, num paralelo com as “redes sociais” e suas “bolhas comunicacionais”, que a reforma tributária tão só venha a oferecer “mais do mesmo”.


[2] SERRA, José. Fantasias de uma reforma tributária. Estado de São Paulo, São Paulo 13 jul. 2023, Caderno A, Espaço Aberto, p. A4.

[5] WERNECK, Rogério. Descaso pelo dissenso. Estado de São Paulo, São Paulo 7 jul. 2023, Caderno B, Economia Negócios, p. B12.

[6] PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 8 ed., São Paulo: Saraiva, 2017, p. 79-80.

[7] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 29 ed., São Paulo: Malheiros, 2013, p. 145 e 432-433.

[8] UELZE, Hugo Barroso. Revista de Estudos Tributários. Porto Alegre, v. 24, n. 140, p. 11-12, jul./ ago. 2021.

[9] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed., São Paulo: 2006, p. 32-33.

[10] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42 ed., atualizador José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 731.

[11] CARRAZZA, Roque Antonio. Op. cit., p. 161.

[12] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26. ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 65.

[13] UELZE, Hugo Barroso. Desapropriação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 95, n. 851, p. 713-714, set. 2006.

[14] GODOY, Leonardo Rodrigues de. Princípio da Neutralidade Fiscal e a Livre Concorrência. Revista de Estudos Tributários. Porto Alegre, v. 19, n. 114, p. 101-103, mar./ abr. 2017.

[15] Projeto de Lei do Senado n° 284, de 2017 (Complementar), Autoria: Senadora Ana Amélia (PP/RS) em 10/05/2023 – Aguardando Audiência Pública.

[16] SUKAR, Rayane Dornelas; Abrosio, Claudia Cristina dos Santos; McNaughton, Cristiane Pires. Limitações indevidas ao aproveitamento de créditos do PIS e da Cofins com representantes comerciais. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo. v. 28, n. 146, p. 173, III Trim. 2020.

[17] Como a “glosa de créditos em operações incentivadas” quando não atendidas as condições da LC n. 24/1975 e quando  ainda que posteriormente , verificada a inidoneidade do “contribuinte originário”. MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 14. ed., Porto Alegre: 2018, p. 260-262.

[18] SUKAR, Rayane Dornelas; Abrosio, Claudia Cristina dos Santos; McNaughton, Cristiane Pires. Op. cit., p. 173.

[19] SOUZA, Davi Vieira; SILVA, Annandy Raquel Pereira da; NASCIMENTO, Ítalo Carlos Soares do; MELO, Geison Calyo Varela de; MOREIRA, Caritsa Scartaty. Implantação do imposto sobre valor agregado no brasil: Percepção dos docentes e discentes do curso de ciências contábeis e profissionais de contabilidade. RCC – Revista Contabilidade e Controladoria, Curitiba, v. 12, nº 3, p. 22, set./ dez. 2020.

[20] OLIVEIRA, Dyogo; Lozardo, Ernesto; Sachsida, Adolfo; Ywata, Alexandre. Uma Proposta de Tributação Bifásica: Simplificação, Agilidade e Diminuição do Contencioso Tributário. In: Reforma tributária: Ipea-OAB/ DF. Organizadores Adolfo Sachsida; Erich Endrillo Santos Simas. Rio de Janeiro: Ipea-OAB/ DF, 2018, p. 12-13.

[21] SOUZA, Davi Vieira; SILVA, Annandy Raquel Pereira da; NASCIMENTO, Ítalo Carlos Soares do et. al., Op. cit., p. 21-22.

[22] MELO, José Eduardo Soares de. Op. cit., p. 52.

[23] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida; tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 73-74.

[24] MELO, José Eduardo Soares de. Op. cit., p. 53.

[26] BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., p. 75-76.

[29] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Constitucional. Tributário. Conflito entre o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza e Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias e de Serviços de Comunicação e de Transporte Intermunicipal e Interestadual. Relator: Ministro Joaquim Barbosa, Brasília, DF, j. 13/04/2011, DJe 25/05/2011.

[31] BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., p. 73-74.

[32] COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. 4. ed., São Paulo: Malheiros, 2012, p. 28.

[33] MELO, José Eduardo Soares de. Op. cit., p. 15.

[34] GAMBA, João Roberto Gorini. Teoria geral do estado e ciência política. São Paulo: Atlas, p. 310.

[35] GRUPENMACHER, Betina Treiger. Tributação do Streaming e Serviços Over-The-Top. In: PISCITELLI, Tathiane (Coordenação). Tributação da economia digital. São Paulo: RT, 2018, p. 325.

[36] ROCHA, Sergio André e CASTRO, Diana Rodrigues Prado de. Plano de Ação do BEPS e as Diretrizes Gerais da OCDE. In: PISCITELLI, Tathiane (Coordenação). Tributação da economia digital. São Paulo: RT, 2018, p. 18.

[39] CARRAZZA, Roque Antonio. Op. cit., p. 575.

[40] CALIENDO, Paulo. Op. cit..

[41] OLIVEIRA, Dyogo; Lozardo, Ernesto; Sachsida, Adolfo et. al., Op. cit., p. 11.

[42] OLIVEIRA, Dyogo; Lozardo, Ernesto; Sachsida, Adolfo et. al., Op. cit., p. 12.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-ago-03/hugo-uelze-hely-lopes-meirelles-reforma-tributaria