Princípio da segurança jurídica e o papel do Poder Judiciário

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Como já adiantado na nossa última coluna, o princípio da segurança jurídica e os correspondentes direitos fundamentais (segurança jurídica como um direito em sentido amplo e suas dimensões especiais) vincula diretamente todos os atores estatais, ainda que observadas certas diferenças, como, em primeira linha, aquelas vinculadas à natureza das respectivas funções, designadamente, legislativa, executiva e judiciária.

Isso porque, como igualmente já referido no mesmo texto, os atos legislativos e administrativos — mas também as decisões judiciais —, por meio dos efeitos e consequências jurídicas concretas que operacionalizam, para além de impactarem direitos e garantias desde a sua vigência, igualmente criam expectativas legítimas para os titulares de posições jurídicas asseguradas por tais atos estatais, notadamente em vista da confiança (no Estado) de que o seu exercício será respeitado e assegurado hoje e no futuro [1].

Nesse contexto, calha invocar lição de Luiz Guilherme Marinoni e de Daniel Mitidiero, no sentido de que “o direito à segurança jurídica no processo constitui direito à certeza, à estabilidade, à confiabilidade e à efetividade das situações jurídicas processuais. Ainda, a segurança jurídica determina não só segurança no processo, mas também segurança pelo processo” [2]. Assim, em linhas gerais, o processo deve estar à serviço da segurança jurídica e da proteção dos direitos materiais — em especial, dos direitos e garantias fundamentais —, notadamente em vista dos efeitos concretos e impactos e restrições produzidos pelas decisões judiciais.

Além disso, não apenas cabe aos órgãos judiciários o controle dos atos/omissões dos demais atores estatais que implicam ofensa às exigências da segurança jurídica, mas também a tarefa de também proteger os cidadãos em face de sua própria atuação, como se dá, por exemplo, na hipótese de mudança de entendimento jurisprudencial dominante ou mesmo suficiente para servir de base sólida para a proteção da confiança legítima nela depositada pelos cidadãos, em especial quando se trata de jurisprudência dos Tribunais Superiores.

O modo pelos quais o próprio Poder Judiciário pode cumprir com os seus deveres de proteção no âmbito da segurança jurídica são diferenciados, existindo já uma série de diplomas legislativos dispondo sobre a matéria, ademais de todo um arcabouço jurisprudencial, com destaque aqui para decisões do STF e do STJ.

No campo legislativo, calha iniciar invocando o disposto no artigo 2º da Lei nº 9.784/1999, de acordo com o qual, A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Os instrumentos previstos no caput deste artigo terão caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão” (Incluído pela Lei nº 13.655/2018).

Também em 1999 foram editadas as duas leis que, a despeito de importantíssimos desenvolvimentos posteriores no plano jurisprudencial, ainda regem o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade no Brasil, nomeadamente, as Leis nº 9.868/99 e nº 9.882/99, que regulam, respectivamente, a ADI e a ADPF.

De acordo com o que dispõem, respectivamente, os artigos 27 e 11 das referidas leis que:

“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

“Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

A propósito, é de se salientar que em maio deste ano foi entregue em mãos ao deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, anteprojeto de lei elaborado por comissão de juristas presidida pelo ministro Gilmar Mendes do STF, comissão da qual temos a honra de atuar na relatoria, com o objetivo de sistematizar e atualizar todo o controle abstato de constitucionalidade das leis e atos normativos, inclusive incorporando a jurisprudência da nossa mais alta corte sobre a matéria, ademais da proposição de algumas inovações, que, contudo, aqui não cabe analisar.

Na esfera do processo civil, a necessidade de atentar para as exigências da segurança jurídica igualmente foi objeto de atenção. Nesse sentido, chama a atenção que já no seu primeiro artigo, o Código de Processo Civil de 2015 (CPC) solenemente dispõe que o processo civil é “ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na” Constituição Federal de 1988 (CF), valores e normas que, à evidência, incluem a segurança jurídica.

Tanto isso é verdadeiro que o CPC, como amplamente conhecido, consagra o princípio (e direito) da segurança jurídica em diversos dos seus dispositivos, como é o caso do artigo 525, § 13, do artigo 535, § 6º (inclusive no sentido da prevalência ou favorecimento do princípio da segurança jurídica), do artigo 926, caput (a respeito da “estabilidade” da jurisprudência), bem como do artigo 927, § 3º (adequação dos efeitos de decisões judiciais na hipótese de alteração de jurisprudência dominante de tribunais superiores, em respeito ao interesse social e à segurança jurídica) e § 4º (princípios da princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia).

Mais recentemente, destaca-se a reforma substancial levada a efeito pela Lei nº 13.655/2018 no texto da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), com destaque para o disposto no seu artigo 30, de acordo com o qual “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”.

Sem que se vá aqui adentrar (ainda) o exame das disposições legais colacionadas, o que se busca sublinhar é o quanto a proteção da segurança jurídica pelo Poder Judiciário, inclusive contra os seus próprios atos, tem sido assumida como um elemento central do papel do Poder Judiciário no contexto de um Estado Democrático de Direito.

Nada obstante as exigências da segurança jurídica devam ser observadas e protegidas por todos os órgãos do Poder Judiciário, é certo que, não só, mas também nesse contexto, a necessidade de promover um ordenamento jurídico minimamente inteligível, estável e previsível está intimamente ligada tanto ao papel de Supremas Cortes como o STF e de outros tribunais aos quais incumbe a guarda da Constituição, quanto à função de cortes superiores como o nosso STJ [3], sempre atentando-se, convém aclarar, para as diferenças existentes entre as funções exercidas pelas referidas cortes na ordem jurídica, que aqui não serão exploradas.

Além disso, se, como vimos, em razão do princípio da (e direito fundamental à) segurança jurídica, (1) a ordem jurídica deve ser inteligível, estável e previsível, e a (2) jurisprudência das Cortes Superiores é parte integrante e indissociável da ordem jurídica [4], tem-se que (3) sua jurisprudência também deve ser inteligível, estável e previsível. Não por outra razão, o legislador infraconstitucional, no já citado artigo 926 do CPC, expressamente determinou que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

Ainda no que diz respeito à proteção da segurança jurídica pelo Poder Judiciário — no e pelo processo (e não apenas no processo civil, como visto) — tão importante quanto a manutenção de uma jurisprudência estável, íntegra e coerente, é a proteção dos direitos e garantias fundamentais — de todas as dimensões — em face de alterações de natureza legislativa, administrativa e mesmo por decisões judiciais que, além de atentarem contra manifestações especificas (por sua vez, consagradas na CF como direitos fundamentais) da segurança jurídica (mas que, por sua vez, servem à proteção de outros direitos), como é o caso do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, violem as exigências da proteção à confiança legítima, incluindo as expectativas de direito e um direito a um regime de transição proporcional.

Mas isso e outros aspectos correlatos, como é o caso da proteção contra mudanças jurisprudenciais e da modulação dos efeitos das decisões do STF e do STJ, é algo que ainda teremos oportunidade de desenvolver.

Por ora, o que se quis, em apertada síntese, demonstrar, é o quanto a proteção e promoção da segurança jurídica, nas suas mais variadas refrações, tornou-se uma das funções mais importantes do Poder Judiciário e, em especial, no caso brasileiro, do STF e do STJ.

 


[1] Na doutrina, sobre a expectativa legítima de direitos, v. BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalidade e legitimidade da Reforma da Previdência: ascensão e queda de um regime de erros e privilégios. Revista de Direito da Procuradoria -Geral do Estado do Rio de Janeiro, vol. 58, 2004, p. 145.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel, in: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel, Curso de direito constitucional, 12ª ed., São Paulo: Saraiva, 2023, p. 963.

[3] MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas, 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2022.

[4] ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Recurso Especial, Recurso Extraordinário e a Nova Função dos Tribunais Superiores. 6ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 294.)

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-jul-28/direitos-fundamentais-principio-seguranca-juridica-papel-poder-judiciario