Rafael Freitas: O PL 7.448/2017 e a responsabilidade administrativa

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A incerteza é paralisante. Mais que isso, ela tem um preço. E cuida-se de um valor que não é insignificante na relação público-privada. O particular “precifica” os riscos de se relacionar com o poder público, notadamente os que decorrem das relações imperativas que se legitimaram, até bem pouco tempo, pelo adágio da supremacia do interesse público — o qual, por sua inerente cambialidade, justificou uma profusão de “incertezas” para quem se relacionava com a administração pública. Abusos foram cometidos. Relações espúrias entre o público e o privado revelaram que a combinação entre a “incerteza” e a “imperatividade” importou em deletérios resultados para o tão protegido interesse público.

Apoiado em reações institucionais açodadas, caminhamos, rapidamente, para um extremo e perigoso oposto. Os órgãos de controle passaram a entender que os agentes públicos deveriam tomar suas decisões com base nas suas “certezas”. Acontece que a substituição da “certeza” do agente público pela “certeza” do controlador importou, ao fim e ao cabo, em um cenário de “incerteza”, seja para próprio agente público, seja para o particular que com ele se relaciona. O resultado: a paralisia da administração pública brasileira. Ninguém decide mais nada. O período de “caça às bruxas” faz com que o particular tenha de “precificar” os custos da inércia do poder público, ou da revisão de seu posicionamento pelos órgãos de controle.

É nesse cenário que, em ótima hora, caminha para sanção presidencial o Projeto de Lei 7.448/2017, elaborado pelos professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto, que tem por desiderato incluir dispositivos à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). Para o que aqui importa, é de se destacar o disposto no seu artigo 28, que, em seu caput, prescreve que o “agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.

A ratio do novel dispositivo não é outra senão a de contribuir para que os agentes públicos saiam na inércia. Que possam decidir, sem o medo da reprimenda por não se valerem das “certezas” dos órgãos de controle. O ilícito ou improbo passará a ser não decidir. Cuida-se de prescrição que vai ao encontro da remansosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, de acordo com a qual a Lei de Improbidade deve “alcançar o administrador desonesto, e não o inábil” (REsp 213.994/MG). A segurança jurídica está na certeza de que o agente não será penalizado pelo seu atuar. As vicissitudes de sua atuação, claro, terão de ser apuradas, mas se volta a privilegiar a presunção de legalidade dos atos administrativos. Nada que afronte a moralidade, nem, tampouco, a legalidade. Muito ao contrário, cuida-se de dispositivo que se encontra em plena consonância com o entendimento do STJ, de acordo com o qual a responsabilização por atos de improbidade é predicadora da comprovação do elemento subjetivo do agente público ou mesmo do terceiro beneficiário (por exemplo, REsp 1.273.583/SP).

Para além disso, tenho para mim que tal dispositivo terá o condão de gerar os relevantes incentivos de: (i) contribuir para que o administrador melhor fundamente o seu agir, por intermédio de uma adequada processualização, de sorte a reduzir os riscos de que suas decisões sejam inquinadas pela pecha dos “atos dolosos” ou dos atos praticados lastreados em um “erro grosseiro”; e (ii) inverterá e ampliará o ônus de fundamentação para o controlador, que passará a ter de demostrar, por intermédio de provas concretas, que o ato praticado pelo agente público restou maculado pela intenção de malferir a probidade administrativa.

O parágrafo 1º do artigo em comento prescreve que “não se considera erro grosseiro a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais”. A referida previsão visa resguardar a capacidade institucional de que os advogados públicos dispõem para orientar a decisão administrativa praticada pelos gestores públicos. Cuida-se de salutar previsão, na medida em que caminha na firme trilha de preservar a inviolabilidade das manifestações dos advogados públicos, que é garantida, seja pelo artigo 133 da CRFB, seja pelo disposto no artigo 2º, parágrafo 3º, da Lei 8.906/1994, que institui o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. E que se encontra em plena consonância com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, de acordo com o qual a responsabilização do advogado público só poderá ocorrer quando ele atuar com dolo ou erro grosseiro (por exemplo, MS 24.631/DF).

Tenho para mim que, a partir da promulgação de tal dispositivo, passará a ter lugar o dever de deferência do controlador para com o juízo técnico do advogado público — tomando, por empréstimo (e por analogia), dos parâmetros previstos no multicitado precedente da Suprema Corte norte-americana Chevron U.S.A., Inc. vs. Natural Resources Defense Council, Inc., 467 US 837 (1984) — recentemente revisitado pelo precedente Arlington et al. vs. FCC (133 S. Ct. 1863 (2013).

Por derradeiro, os parágrafos 2º e 3º do dispositivo em comento autorizam que, na hipótese de responsabilização do agente público no exercício regular de sua competência, lhe sejam franqueados o apoio e o custeio de sua defesa técnica, ressalvado o seu dever de restituir tais valores, caso seja reconhecido, por sentença transitada em julgado, que o ato questionado foi praticado com “dolo”, ou com lastro em “erro grosseiro”. Cuida-se de previsões que se compatibilizam com a Teoria do Órgão (amplamente adotada pela doutrina pátria), de acordo com a qual toda ação do agente público deve ser imputada à pessoa jurídica à qual ele esteja vinculado. E que, por tal razão, em âmbito federal, tem previsão no artigo 22, da Lei 9.028/1995, que autoriza a Advocacia-Geral da União e os seus órgãos vinculados, nas respectivas áreas de atuação, a representar judicialmente agentes públicos, quanto a atos praticados no exercício de suas atribuições constitucionais, legais ou regulamentares, no interesse público.

Em resumo, o dispositivo em comento consolida um regime de responsabilização dos agentes e dos advogados públicos. Não é violador do ordenamento jurídico. Ora, se é certo que o regime de responsabilização do poder público (da sua irresponsabilidade até a sua responsabilização objetiva), teve por desiderato a submissão do administrador público à lei, seria contraditório afirmar-se que a sistematização de sua responsabilização, em uma lei interpretativa, atentaria contra o primado da legalidade, máxime no âmbito de um Estado Democrático de Direito. Do mesmo modo, não engessa o controle. Na verdade, estabelece parâmetros a partir dos quais ele deve ser exercido, parâmetros esses que foram instituídos, pelos próprios órgãos de controle, ou pela legislação.

Assim é que, por intermédio de tal dispositivo, tende-se à redução dos custos da sobreposição de controles, a se desfazer a paralisia que acometeu a administração pública, nos últimos anos, a se conferir maior previsibilidade a projetos, a se atrair investimentos do setor privado, a incrementar-se a penalização dos verdadeiros criminosos e, na ponta, a reduzir o Custo Brasil. Trata-se de uma oportunidade única, que não pode ser desperdiçada.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2018-abr-18/rafael-freitas-pl-74482017-responsabilidade-administrativa