Lucas Morimoto: ADPF 1.050 e a dúvida na arbitragem

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De certo, os leitores desta ConJur muito já leram acerca das perspectivas e nuances relacionadas ao debate envolvendo a ADPF 1.050, já convertida em ADI[1]. Seja pelos holofotes que tais discussões receberam na comunidade arbitral, ou mesmo pela inconformidade de autores pelos recentes “ataques” à arbitragem brasileira[2].

Tratamos, na tímida busca de contribuirmos para as discussões, de fazer nossa análise à partir do clássico problema da proibição de veículos em parques escrita por Hart em 1958[3]. Hart, em seu paper, levantara a discussão quanto a multiplicidade de sentidos quando da aplicação de normas a partir do exemplo da proibição do trânsito de veículos em um parque. Em suas palavras:

“Uma norma legal o proíbe de levar um veículo para parque público. É óbvio que isso proíbe um automóvel, mas e quanto a bicicletas, patins, carros de brinquedo E quanto aos aviões? Esses, como dizemos, devem ser chamados de “veículos” para os fins da regra ou não?” (grifo e tradução nossa).

O objetivo de Hart era claro: discriminar que, de fato, há significados para a aplicação de dispositivos normativos que são indubitáveis, ao passo que também existem elementos de penumbra que geram situações em que não há clareza quanto a aplicação, ou não, de uma regra [4].

Fato é que, na visão de Hart, a responsabilidade de decisão do alcance de palavras, bem como do que estas abrangem, ou não, é do julgador. Em outras palavras, caberia ao intérprete a feliz escolha de aplicar o direito como deve ser (ought to be[5].

Portanto, o atual contexto político-jurídico brasileiro levou à sorte ao Supremo Tribunal Federal de decidir acerca do escrutínio do dever de revelação pelos árbitros no artigo 14 da Lei de Arbitragem [6].

Ao passo que instigante o estudo do dever de revelação dos árbitros, muito já fora discutido e analisado por processualistas/arbitralistas acerca dos temas no contexto brasileiro. Seja por tradicionais posicionamentos ao longo dos anos [7], ou mesmo pelo árduo trabalho de grupos de estudos e de câmaras arbitrais respeitadas [8].

Verifica-se que não restam dúvidas quanto à maturidade existente nas discussões domésticas relativas aos temas de revelação, bem como da utilização por tribunais brasileiros de  diretrizes internacionais como ferramenta de avaliação dos temas [9].

A dúvida que resta é quando ao julgamento do Supremo Tribunal Federal acerca da ADPF, bem como das consequências que esta pode causar à arbitragem brasileira.

Não é de hoje que se sabe que a arbitragem, como processo, se consiste em uma “justiça com outra mentalidade, com espírito próprio” [10] ou, por alguns, também vista como um próprio “subsistema jurídico autopoiético” [11]. A lição de ambas as citações vão no sentido de que a arbitragem possui suas peculiaridades e costumes intrínsecos na busca de sua utilização pelas partes, não à toa seria todo o esforço doutrinário para sua distinção latente de outros meios de solução de controvérsias [12].

Diversas poderiam ser as razões pelas quais, nos últimos anos principalmente, discussões relacionadas a reforma da lei de arbitragem [13], veto presidencial acerca da utilização da arbitragem como meio alternativo de resolução de disputas em contextos específicos, ou da presente ADPF 1.050 tomam holofotes.

Sobre o veto presidencial mencionado, aqui lembramos o veto do ex-presidente Jair Bolsonaro quando da aprovação do Projeto de Lei 11.275/2018, convertido na Lei 14.470/2022, em que o então presidente vetou a inclusão da obrigação pelo compromissário em Termos de Cessação de Condutas (TCC), ou acordos de leniência de submeter controvérsias quanto a pedidos de reparação de prejuízos sofridos em razão de infrações à ordem econômica à arbitragem.

Na época, a justificativa apresentada ao Portal de Notícias do Senado[14] era de que a proposição traria um desincentivo à assinatura dos acordos de leniências ou TCCs. Mesmo assim, em 2022, dos 37 TCCs realizados pelo Cade, 18 possuíam menções à faculdade das partes de submeterem suas controvérsias à arbitragem [15].

Feito este parêntese do cotidiano shakespeariano [16], fato é que mesmo demonstrando melhores índices ao passar dos anos [17], a arbitragem brasileira têm sido objeto de diversas discussões que retomam, de modo similar, posicionamentos que afetem a utilização deste meio adequado de resolução de conflitos.

Mesmo assim, é inegável que a suspeição de árbitros se caracteriza como é fato subjetivo, como elencada em recente webinar realizado pelo Canal Arbitragem[18]. Daí a necessidade da interpretação dos fatos subjetivos para a produção de efeitos e, consequente, aplicação da norma jurídica.

Não há que se falar em prejuízos interpretativos acerca de atos normativos, principalmente quando observa-se que não há que se falar em norma jurídica, senão norma jurídica interpretada (es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen[19].

Entretanto, também não há de se falar em interpretação ilimitada acerca da norma jurídica. Resta crer, que em sede da ADPF 1.050, o STF, ao futuramente pormenorizar possíveis elementos objetivos para os limites do dever de revelação do artigo 14 da Lei de Arbitragem, bem como de elementos supervenientes à suspeição de árbitros, não poderá se pautar no voo dos pássaros [20].

Isto é: A discricionariedade do Supremo deverá ser pautada pelo suporte fático[21] existente quando da natureza, e contexto, dos procedimentos arbitrais brasileiros. Qualquer decisão que não seja pautada levando em consideração a hercúlea construção dos últimos 27 anos de Lei de Arbitragem pode inviabilizar a existência do instituto.

Por fim, não há que se reinventar a roda, mas também não há por que de não termos um “melhor design” para ela [22].

 


[3] HART, Herbert Lionel Adolphus. Positivism and the separation of Law and Morals. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958.

[4] Idem, p. 607.

[5] Idem, p. 613.

[7] Por “tradicional”, mencionamos aqui a 4ª edição do comentário à Lei de Arbitragem do Professor Carlos Alberto Carmona, que, ao comentar sobre o artigo 14 da Lei, traz elementos relativos não só de competência aos árbitros quanto à revelação, mas também das partes de encontrar elementos disponíveis de forma pública, como na internet. Vejamos: “Por outro lado, há informações que podem ser obtida diretamente pelas partes interessadas e que não dependem de  revelação. A rede mundial de computadores está abarrotada de dados – disponíveis a qualquer interessado – que indicam as atividades sociais e profissionais de todos nós. os instrumentos de busca e de pesquisa permitem encontrar com facilidade nossas mais recentes (e mais antigas) atividades sociais, acadêmicas, participações em órgãos diretivos de instituições e associações, publicações, viagens, manifestações públicas etc. Não é o razoável que as partes envolvidas em processo arbitral se sintam minimamente perturbadas se estes dados constantes das redes sociais não forem “revelados” pelos candidatos a árbitros”.

[9] Aqui destacamos a utilização, pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, das IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration na Ap. 1116375-63.2020.8.26.0100, de relatoria do Des. Maurício Pessoa.

[10] WALD, Arnoldo. O espírito da arbitragem. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo: RIASP, v. 12, n. 23, p. 22-35, jan./jun. 2009.

[12] Aqui entendemos mister a separação e definições dos “Postulados Filosóficos” apresentados por Gaillard em sua visão da conexão da arbitragem à ordem jurídica. GAILLARD, Emmanuel. Teoria Jurídica da Arbitragem Internacional. Editora Atlas, p. 18, 2014.

[13] Aqui mencionamos as discussões referentes ao Projeto de Lei 3.293/2021, de apresentação da então Deputada Margarete Coelho do PP/PI, que hoje se encontra em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) na Câmara dos Deputados.

[15] São estes: SEI nº 1074998; SEI nº 1075019; SEI nº 1075000; SEI nº 1074979; SEI nº 1074972; SEI nº 1074984; SEI nº 1074988; SEI nº 1076999; SEI nº 1075015; SEI nº 1074953; SEI nº 1081695; SEI nº 1074963; SEI nº 1075009; SEI nº 1076999; SEI nº 1074993; SEI nº 1075032; SEI nº 1075004; e SEI nº 1075006.

[19] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para uma interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, p.9, 1997.

[20] Na visão do Jurista Italiano, Michele Taruffo: “Uma prima precisazione, forse ovvia ma necessária, è nel senso che la decisione finale sui fatti non vaconcepita come l’esito de uma sorta di divinazione. Il giudice non decide interpretando Il volo degli uccelli, examinando la posizione degli astragali o osservando il comportamento di um pulcino avvelanato”. TARUFFO, Michele. La semplice verità. Il giudice e la costruzione dei fatti. Bari: Editori Laterza, p. 194 – 195, 2009.

[21] Aqui a utilização do termo não se confunde com a tradição alemã do Tatbestand à partir do direito penal, mas sim da concepção em ordem com o posicionamento do jurista Pontes de Miranda acerca da universalidade do conceito na ciência jurídica, conforme: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de Direito Privado: Parte Geral, Tomo I. Rio de Janeiro, Editor Borsoi, p. 44, 1972.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-set-03/lucas-morimoto-proibido-veiculos-parque-duvida-justificada-arbitragem