Koehler e Flumignan: O que foi decidido no ARE 803.568

Uncategorized

O Plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) finalizou, no último dia 21 de agosto, o julgamento dos embargos de declaração nos embargos de divergência no segundo agravo regimental no recurso extraordinário com agravo nº 803.568. Mas antes estivéssemos perdidos apenas na pletora de recursos previstos em nosso sistema jurídico disfuncional [1].

O caso concreto, em verdade, é um exemplo de outra disfuncionalidade. O método seriatim de votação adotado pelo STF dificulta a identificação dos fundamentos decisórios adotados por cada ministro, em razão de estarem diluídos ao longo dos diversos votos proferidos. Isso obriga o usuário do sistema a identificar o iter percorrido por cada ministro e analisar todo o debate, as intervenções e os apontamentos feitos pela totalidade dos julgadores [2].

Tem sido amplamente difundido nos últimos dias que, no julgamento em tela, teria prevalecido a divergência inaugurada pelo ministro Gilmar Mendes, em cujo voto se lê: 

“O entendimento consagrado naquele julgado paradigmático da repercussão geral [refere-se ao Tema 1.199]  no sentido da impossibilidade de aplicação de norma legal expressamente revogada antes do trânsito em julgado da sentença condenatória , se aplica perfeitamente ao caso em questão, em que revogado o inciso I do artigo 11.
(…)
Por todo o exposto, peço vênia para divergir do relator e voto no sentido de acolher os embargos de declaração, com atribuição de efeitos infringentes para, reformando o acórdão embargado, dar provimento aos embargos de divergência, ao agravo regimental, e ao recurso extraordinário com agravo, para extinguir a presente ação civil pública por improbidade administrativa no tocante ao recorrente.”

Assim, teria o Plenário do Supremo decidido no sentido de estender o entendimento quanto à retroatividade fixado no Tema 1.199  ou seja, no sentido da impossibilidade de aplicação de norma legal expressamente revogada antes do trânsito em julgado da sentença condenatória  para o artigo 11, inciso I, da LIA.

Mas foi isso mesmo que aconteceu? Para responder a tal questão, há que se conferir o passo a passo do julgamento, que se deu no plenário virtual do STF, entre os dias 19/5/2023 a 26/5/2023, e, após, devolução de pedido de vista, entre 11/8/2023 e 21/8/2023.

O voto do relator, ministro Luiz Fux, não conhecia dos embargos de divergência por ausência de similitude fática entre o caso sub judice e o acórdão paradigma. Nessa linha, concluía que “não se verifica nenhuma das hipóteses ensejadoras dos embargos de declaração, eis que o acórdão embargado, não tendo partido de premissas equivocadas, apreciou os embargos de divergência de maneira clara e coerente”, pelo que desprovia o recurso, aplicando multa de 2% à parte embargante. Inicialmente, o voto do relator foi acompanhado pelos ministros Ricardo Lewandowski, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes. O ministro Marco Aurélio apresentou voto-vogal divergindo do relator apenas no que tange à aplicação da multa, e acompanhando-o quanto ao restante.

Após pedido de vista, o ministro Gilmar Mendes trouxe voto divergindo do relator, a fim de dar provimento aos embargos, com efeitos infringentes, nos termos já explicitados. Foi acompanhado pelos ministros Dias Toffoli, Nunes Marques e Rosa Weber.

O ministro Alexandre de Moraes, depois de pedir vista dos autos, retificou seu voto para “acompanhar a divergência aberta pelo ministro Gilmar Mendes, com a ressalva quanto à fundamentação”. Assim, acolheu os embargos de declaração e julgou improcedente a ação de improbidade administrativa. Foi acompanhado pelo ministro Roberto Barroso. Não votaram os ministros Cristiano Zanin e André Mendonça, sucessores, respectivamente, dos ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio.

Vê-se, porém, que o ministro Alexandre de Moraes adotou fundamento diverso, pois, “Não é o caso de aplicar-se aqui a tese fixada no Tema 1199, pois, para fins de delimitação do alcance da repercussão geral, a tese deve sempre guardar estrita aderência ao caso concreto examinado” e que “no Tema 1199, o debate cingiu-se a averiguar a retroatividade ou não das novas normas da Lei de Improbidade Administrativa acerca da necessidade da presença do elemento subjetivo  dolo  para a configuração do ato de improbidade administrativa; e dos novos prazos de prescrição”. Concluiu pela absolvição por outro motivo, em virtude da ausência de configuração do elemento subjetivo (dolo) na prática do ato impugnado.

Na contagem final, portanto, prevaleceu: a) quanto ao resultado: seis votos [3] pelo acolhimento e cinco votos [4] pela rejeição dos aclaratórios. Consequentemente, os embargos foram acolhidos  por maioria  e a ação de improbidade administrativa foi julgada improcedente; b) quanto à fundamentação (ratio decidendi): cinco votos [5] pelo não provimento dos embargos; quatro votos [6] pelo acolhimento dos embargos, com a fundamentação do ministro Gilmar Mendes; dois votos [7] pelo acolhimento dos embargos, com a fundamentação do ministro Alexandre de Moraes.

Devido à dispersão de fundamentos[8], não houve votos suficientes para formar a maioria no que tange à ratio decidendi. Inexistindo fundamento predominante, fica impossibilitada a construção de uma norma precedental a partir do julgamento [9].

Caso houvesse maioria de votos no sentido do fundamento adotado pelo voto do ministro Gilmar Mendes, estaria presente o caráter vinculante do precedente, por força do artigo 927, V, do CPC (orientação do Plenário do STF). No entanto, mesmo nessa hipótese, não seria permitida a aplicação das disposições dos artigos 1.030 e 1.040 dirigidas à Presidência ou Vice-Presidência dos tribunais, uma vez que limitadas aos precedentes firmados com repercussão geral ou no regime de recursos repetitivos.

A propósito, a revogação do artigo 11, inciso I, da Lei nº 14.230/21 é objeto das ADIs 7.236 e 7.237, propostas, respectivamente, pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Sustenta-se que a supressão das hipóteses de desvio de finalidade e de negligência na atuação estatal do rol de atos constitutivos de improbidade administrativa caracterizaria um “afrouxamento no regime de combate à endêmica e crescente corrupção pública no País”, também em afronta aos princípios da segurança jurídica, da proibição de retrocesso, da proporcionalidade e da proibição de proteção deficiente.

O relator, ministro Alexandre de Moraes, proferiu decisão monocrática na ADI 7.236 em 27 de dezembro de 2022, entendendo, com relação ao ponto, que:

“Em relação aos artigos 11, caput e incisos I e II; 12, I, II e III, §§4º e 9º, e artigo 18-A, parágrafo único; 17, §§10-C, 10-D e 10-F, I; 23, caput, §4º, II, III, IV e V, e §5º NÃO ESTÃO PRESENTES OS REQUISITOS para a concessão da medida cautelar pleiteada pela requerente”.

A problemática sobre a revogação do inciso I do artigo 11 da Lei nº 14.230/21, portanto, permanece em aberto no aguardo de decisão pelo STF. Ainda que se decida pela constitucionalidade da revogação e haja o reconhecimento da atipicidade para os casos em curso, pelo fato de o inciso I do artigo 11 ser um tipo aberto, deverá ser dada oportunidade ao autor da demanda para eventualmente fazer novo enquadramento [10].

Por fim, um detalhe processual que merece destaque e que parece ter passado despercebido é que os embargos de declaração foram acolhidos sem que a parte embargada tivesse sido intimada para apresentação de contrarrazões, como se lê no voto do ministro Luiz Fux, relator original do processo:

“Destaco, por oportuno, que não houve a intimação para apresentação de contrarrazões ao presente recurso, em obediência ao princípio da celeridade processual e por não se verificar prejuízo à parte ora embargada (artigo 6º c/c artigo 9º do Código de Processo Civil de 2015).”

O voto do relator dispensava a intimação da parte embargada pois decidia pela rejeição dos embargos de declaração.

Ocorre que, como visto, ao final do julgamento, o STF findou por acolher os embargos declaratórios, com efeitos infringentes, invertendo o resultado do julgamento recorrido. A ação de improbidade administrativa teve a modificação do julgamento de procedência para improcedência do pedido, sem a oitiva da parte interessada.

Ofendeu-se, assim, inadvertidamente, a prescrição do artigo 1.023, §2º, do CPC [11].

 

 


[1] Sobre o tema, um dos autores já teve oportunidade de tecer estudos mais aprofundados: KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. A razoável duração do processo. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 255-268.

[2] Confira-se: KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino; OLIVEIRA, Leonardo Sousa de Paiva. O STF, o método de votação seriatim e a necessidade de aperfeiçoamento do sistema de precedentes. In: O sistema de precedentes brasileiro: demandas de massa, inteligência artificial, gestão e eficiência. FERRAZ, Taís Schilling; KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino; LUNARDI, Fabrício Castagna (Coords.). Brasília: Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, 2022, p. 81-104. Disponível em: https://www.enfam.jus.br/publicacoes-3/.

[3] Ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Nunes Marques, Rosa Weber, Alexandre de Moraes e Roberto Barroso.

[4] Ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Marco Aurélio.

[5] Ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Marco Aurélio.

[6] Ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Nunes Marques e Rosa Weber.

[7] Ministros Alexandre de Moraes e Roberto Barroso.

[8] Sobre o tema “dispersão de fundamentos”, confiram-se: BRANDO, Marcelo Santini; LEITE, Fábio Carvalho. Dispersão de fundamentos no Supremo Tribunal Federal. Revista Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, nº 48, p. 139-166, jan./jun. 2016; ALMEIDA, Guilherme da Franca Couto Fernandes de; CHRISMANN, Pedro Henrique Veiga. Os paradoxos da deliberação judicial colegiada. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 6, nº 1, p. 165-188, jan./abr. 2019.

[10] Naturalmente, deverão ser observadas as especificidades de cada caso. No ARE 803.568, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes bem ressaltou a impossibilidade de eventual reenquadramento do ato apontado como ilícito pelo Tribunal de origem em previsões contidas no artigo 9º ou 10º da LIA, tendo em vista a existência de recurso extraordinário exclusivo da defesa, com a incidência do princípio da proibição da reformatio in pejus para o recorrente.

[11] Artigo 1.023. §2º O juiz intimará o embargado para, querendo, manifestar-se, no prazo de cinco dias, sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhimento implique a modificação da decisão embargada.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-set-03/koehlere-flumignan-oque-foi-decidido-are-803568