Caio Shimoda: Benefício fiscal a ‘pequenas’ startups de IA

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A influência da tecnologia sobre o Direito
A nossa Constituição é expressa quanto ao dever do Estado brasileiro em promover a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação (PDI).

É competência concorrente da União, estados e Distrito Federal legislar sobre ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação (artigo 24, IX, CRFB). Além disso, o artigo 218, caput, CRFB, dispõe que “o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação”, sendo a lei o veículo normativo apropriado para apoiar e estimular as empresas que invistam em pesquisa e criação de tecnologia em nosso país (artigo 218, §4º, CRFB).

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É certo, também, que exercer essa competência implica em gastos e, sabendo que os recursos públicos são limitados, o dever extraível dos referidos dispositivos constitucionais pode ser graduado a depender das circunstâncias fáticas que envolvem o texto normativo. Essa realidade, inevitavelmente, acarreta a adoção de uma escolha por parte daqueles que detêm a atribuição para aplicar o dinheiro público.

No plano fático, presenciamos uma inovação tecnológica disruptiva conhecida como digitalização. Esse fenômeno é capaz de produzir alterações sociais tão intensas quanto a impressão tipográfica e a industrialização – estas marcadas por influenciarem fortemente a segunda metade do último milênio.

A digitalização provoca, atualmente, a crescente transformação digital de quase todas as áreas da vida humana, sobretudo nas esferas da economia, política, cultura e da comunicação pública e privada. Nesse contexto, são a inteligência artificial (IA), big data, algoritmos, blockchain e robótica os conceitos-chave que caracterizam o desenvolvimento técnico contemporâneo.

Analisando em específico a IA, trata-se de uma tecnologia absolutamente disruptiva apta a produzir impactos extraordinários na forma como vivemos. As mudanças já são perceptíveis por intermédio das mudanças de paradigmas, especialmente nas relações pessoais e na produção industrial.

Essa tecnologia é ramificada na robótica, nos reconhecimentos de voz e de imagem, no aprendizado de máquina (machine learning) e no processamento de linguagem natural. Porém, em geral, de acordo com Wolfgang Hoffmann-Riem, a IA pode ser traduzida como o “[…] esforço de reproduzir digitalmente estruturas de decisão semelhantes às humanas, ou seja, de projetar um computador de tal forma e, em particular, de programá-lo usando as chamadas redes neurais de tal forma que possa processar os problemas da maneira mais independente possível e, se necessário desenvolver ainda mais os programas utilizados”  [1].

Não obstante o avançado nível técnico exigido, a IA já está bastante difundida em nosso cotidiano, muito em razão do desempenho de empresas estrangeiras, como as norte-americanas e as chinesas. Os exemplos passam pelas redes sociais, bancos, segurança digital, transporte, reconhecimento facial e, até mesmo, por seu emprego na agricultura e na medicina.

Diante dessa realidade, devemos adotar como premissa que as novas tecnologias exercem influência cabal sobre o mundo jurídico. Como exposto por Ricardo Campos, não devemos mais compartilhar da ideia tradicional de que apenas o Direito, através de suas sanções, interfere nas condutas sociais, mas que, também, a própria evolução dos novos meios de comunicação social afeta, sobremaneira, a própria compreensão do Direito [2].

Por isso, tendo em vista a exponencial relevância da IA para toda e qualquer sociedade contemporânea, o dever estatal anteriormente referido no artigo 218, caput, CRFB, necessita ser interpretado como fundamental.

O baixo nível de investimentos brasileiros em PDI
Mas, além de fundamental, o dever do Estado em promover a PDI demonstra-se urgente quando nos debruçamos sobre as deficiências do Brasil em termos de investimentos em IA [3].

Quando comparado ao aporte realizado por outros países nessa mesma espécie de tecnologia, a realidade se torna ainda mais evidente. Assim, por exemplo, em 2019, enquanto o Brasil investiu apenas 1 milhão USD em startups que buscam inovar em IA, a China investiu 45 milhões USD e os EUA investiram 224 milhões USD nesse mesmo modelo de negócio.[4]

Outra pesquisa demonstra que o Brasil contabiliza com apenas 26 startups de IA, enquanto o Reino Unido conta com 245, Israel com 362, China com 383 e os EUA com 1.393 startups de IA.[5]

É importante destacar o escasso investimento brasileiro em IA através do exemplo das startups [6], porquanto são consideradas verdadeiros motores para a PDI de um país. Segundo Yuen Ping Ho, Po Kam Wong e Erkko Autio, geralmente inovações bem-sucedidas no mercado foram frutos de atuação das startups de alto-crescimento, as quais são responsáveis por um grande aumento de produtividade e de criação de empregos na localidade onde exercem suas atividades [7].

Mas como alterar esse panorama brasileiro de escassez em investimentos nas searas da PDI? Parece ser interessante para todo e qualquer país, sobretudo para o Brasil, a busca pelo aprimoramento do ambiente de investimentos no que diz respeito às startups que atuam em IA – em especial, para aquelas consideradas de pequeno porte, como definido pela Lei Complementar nº 123 de 2006.

Obviamente, as startups consideradas de pequeno porte, num primeiro momento, não são responsáveis por grandes impactos no desenvolvimento da tecnologia e da economia de um país. Porém, acreditamos que o objetivo que deva ser almejado é justamente o crescimento dessas empresas, a fim de revelar ideias lucrativas e inovadoras – inclusive em IA – que promovam relevante impacto socioeconômico.

Nesse contexto, foi elaborada a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (Ebia), cujos objetivos, para o que nos interessa, são promover investimentos sustentados em pesquisa e desenvolvimento em IA, remover barreiras à inovação em IA, assim como estimular a inovação e o desenvolvimento da IA brasileira em ambiente internacional [8].

Em relação às startups brasileiras de IA, a Ebia aponta a alta carga tributária como um dos principais desafios a ser enfrentado [9]. A OCDE recomenda a reforma do regime de tributação indireta, bem como a consolidação de impostos sobre o consumo nos níveis estadual e federal em um único imposto sobre valor adicionado, que tenha uma base ampla e restituição integral de valor adicionado pago na forma de insumos [10].

A E-Digital destaca os principais desafios para as startups no Brasil: a ausência de trabalhadores qualificados, sobretudo de programadores de computador; a burocracia e a demora para abertura e liquidação de empresas; e, especialmente, a complexidade da legislação tributária [11].

A complexidade do nosso sistema tributário é e sempre foi alvo de ataques por aqueles que buscam compreender a economia brasileira. Mas, de acordo com Tacio Lacerda Gama, inexiste relação de causa e efeito entre o fator complexidade e desenvolvimento econômico. Existem países com ótimo índice de desenvolvimento econômico e humano que convivem com sistemas tributários complexos. Da mesma forma, há países com baixos índices de desenvolvimento e com sistemas simples.[12].

Benefícios fiscais para as “pequenas” startups de IA
Mas, sem tocar em cláusula inalterável da nossa Lei Maior, o direito tributário ainda guarda importante ferramenta que permite a promoção de finalidades extrafiscais por intermédio do incentivo de condutas. Trata-se dos benefícios fiscais.

O referido instrumento detém um enorme potencial para fomentar a PDI. Percebe-se que, desde a Lei n° 8.661/93, passando pela Lei n° 11.077/04 (Lei da Informática) e terminando na Lei n° 11.196/05 (Lei do Bem), a ideia de pontuais concessões de incentivos fiscais foi substituída pela estratégia de abrangência de todos os setores econômicos que invistam em PDI.

Não obstante a visível evolução no que diz respeito ao cumprimento do dever expresso no artigo 218, caput, CRFB, acreditamos que ainda é possível avançar em três pontos: (1) sem retirar o caráter abrangente da Lei do Bem, estender os benefícios para as startups; (2) não condicionar o gozo dos incentivos fiscais apenas para as empresas optantes do lucro real; e (3) criar benefícios apropriados para outros regimes tributários [13].

O Projeto de Lei n°4.944/20, de autoria da deputada federal Luisa Canziani (PSD-PR) e de relatoria do deputado federal Vitor Lippi (PSDB-SP), foi aprovado pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados. A proposta visa alterar a Lei do Bem para, entre outras mudanças, ampliar o seu alcance para as startups, assim como definida pelo Lei Complementar n° 182 de 2021 (Marco Legal das Startups).

Entretanto, pouco ou nada adiantará a ampliação subjetiva da referida lei, se não for viabilizado o aproveitamento dos benefícios fiscais para as startups que adotem outros regimes tributários que não somente o lucro real, bem como caso não seja instituído incentivos fiscais adequados para cada um desses regimes. Em outras palavras, limitar o gozo dos benefícios tributários apenas para os optantes do regime do lucro real significa excluir grande parte das empresas potenciais em PDI.

Especificamente no que diz respeito às startups de IA, sabe-se que, geralmente, as pequenas empresas não adotam o regime do lucro real. Ao contrário, empregam os regimes do lucro presumido, simples nacional ou até mesmo o Inova Simples, regime tributário criado pela Lei Complementar nº 167/2019, que inaugura a figura da Empresa Simples de Inovação.

Sobre a ampliação dos beneficiários tributários, o relatório 2020c da OCDE nos aponta o exemplo bem-sucedido da França, responsável por conceder crédito tributário às empresas que investem em pesquisa, que pode ser deduzido do imposto corporativo devido. Desde 2013, esse programa foi ampliado para cobrir determinados investimentos em inovação realizados por pequenas e médias empresas (PMEs) [14].

Certamente a expansão dos incentivos fiscais para as “pequenas” startups de IA deve ser algo aplicável ao Brasil, até mesmo em razão do que foi estabelecido por nosso constituinte: o dever ao Estado brasileiro de, em nome do princípio da isonomia, lançar mão de tratamento jurídico diferenciado às empresas de pequeno porte, inclusive na seara tributária (artigo 146, III, “d”, e artigo 179, ambos da CRFB).

Em conclusão, a medida adotada para ampliar os benefícios fiscais da PDI, mormente no âmbito de IA, parece ser extremamente positiva para o fomento à inovação na área da tecnologia e, consequentemente, para o cumprimento do dever constitucional disposto no artigo 218 da CRFB. Sabe-se que, atualmente, grande parcela da capacidade de inovação em tecnologia no mundo passa pelas empresas denominadas de startups. Sendo assim, criar um ambiente propício para o crescimento das startups através da ampliação dos benefícios fiscais, principalmente para as pequenas empresas, aparenta ser um passo decisivo para o desenvolvimento da tecnologia e da economia do Brasil.

 


[1] HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Teoria geral do direito digital: transformação digital: desafios para o direito. Trad. Italo Fuhrmann. Rio de Janeiro: Forense, 2021. pág. 14.

[2] CAMPOS, Ricardo. Metamorfoses do direito global: sobre a interação entre direito, tempo e tecnologia. São Paulo: Contracorrente, 2022. pág. 323.

[6] Para a nossa legislação, parte que nos interessa em razão dos seus efeitos jurídicos, são consideradas startups “[…] as organizações empresariais ou societárias, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados” (art. 4º da Lei Complementar n 182 de 2021).

[7] Wong P.K. Ho Y. P. and Autio E. Entrepreneurship, innovation and economic growth: Evidence from GEM data. Vol. 24. Small Business Economics, 2005. pág. 338.

[9] Ibidem, pág. 9.

[10] OCDE (2018b), Getting Skills Right: Brazil, Getting Skills Right, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/9789264309838-en. OCDE (2019a), Going Digital: Shaping Policies, Improving Lives, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/9789264312012-en. Acesso em: 20/01/2023.

[12] LACERDA GAMA, Tacio. Normas de Interpretação no Direito Tributário: uma proposta dialógica para interpretação, argumentação e fundamentação na sociedade em rede. Tese (Livre-docência). Curso de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), São Paulo, 2022. pág. 44.

[13] Conquanto o art. 18 da Lei do Bem permita às microempresas e às empresas de pequeno porte se beneficiarem indiretamente de alguns dos benefícios retratados na lei, é certo que a medida está longe do ideal.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-set-01/caio-shimoda-beneficio-fiscal-pequenas-startups-ia