Opinião: Dano ao erário nas ações de improbidade

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A Lei nº 8.429/93 prevê três espécies de atos de improbidade: a) aqueles que importam em enriquecimento ilícito, tipificados no artigo 9º e incisos; b) aqueles que causam lesão ao erário, tipificados no artigo 10 e incisos; c) aqueles que atentam contra os princípios da Administração Pública, tipificados nos incisos do artigo 11. Aqui nos interessa analisar a segunda espécie, em especial para definir quando se está diante de um ato que causou dano patrimonial ao erário.

Em particular, a questão que procuraremos responder é a seguinte: nos casos de contratação irregular por parte da Administração por violação às normas licitatórias aplicáveis, caso os valores envolvidos na contratação sejam compatíveis com os vigentes no mercado, há dano ao erário?

A principal norma aplicável é o inciso VIII do artigo 10, que tipifica como improbidade a conduta de “frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva”.

A primeira premissa a ser considerada é que, com a Lei nº 14.230/21, passou-se a exigir para a configuração dos atos de improbidade previstos no artigo 10 que o dano ao erário seja efetivo e esteja comprovado nos autos do processo. E, no caso do inciso VIII do artigo 10, essa exigência é reforçada, visto que somente o ato de frustrar licitação e/ou procedimento ou dispensá-los indevidamente que acarrete perda patrimonial efetiva do Estado é que se qualifica como improbidade [1].

Ou seja, como já tivemos a oportunidade de sustentar, não basta a ilicitude do procedimento ou de sua dispensa. Necessário, ainda, a presença de dolo específico por parte do gestor (§§1º e 2º do artigo 11) e que haja lesão efetiva ao erário. Somente conjugados esses três requisitos (ato + dolo + lesão) é que possível falar em improbidade nos termos do inciso VIII do artigo 10 [2] A questão é: quando o dano ao erário é “efetivo”?

A nosso ver, imprescindível a demonstração, por parte do órgão acusador, de que os valores envolvidos na contratação estavam fora dos padrões de mercado (superfaturados). Somente quando comprovado que o Estado, de fato, dispendeu mais recursos do que deveria em uma determinada contratação é que se verifica dano ao erário “efetivo”, decorrente de contratação irregular, a justificar o enquadramento no inciso VIII do artigo 10.

Assim, por exemplo, o mero fato de a contratação de um show via inexigibilidade de licitação ter sido feita sem a observância das regras e dos requisitos previstos na Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) não autoriza o enquadramento da conduta no inciso VIII do artigo 10 da Lei de Improbidade. Necessário, também, que fique demonstrado que os valores envolvidos na contratação foram superiores àqueles praticados no mercado ou, claro, que não houve a prestação do serviço correspondente.

Em caso correlato, ao analisar a contratação irregular de empresa para o fornecimento de material e mão-de-obra para a reforma de clínica oftalmológica, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a não comprovação do superfaturamento dos valores inviabiliza o enquadramento da conduta no inciso VIII do artigo 10 (REsp n. 922.526/SP). E veja que esse julgamento ocorreu em 2019, quando a redação do referido dispositivo não previa expressamente, como faz agora, a exigência de que o ato enseje perda patrimonial efetiva.

A reforçar ainda mais essa interpretação, o STJ também já definiu que “Nas ações de improbidade administrativa, é indevido o ressarcimento ao erário de valores gastos com contratações, ainda que ilegais, quando efetivamente houve contraprestação dos serviços, sob pena de enriquecimento ilícito da Administração” (por todos, ver AgInt no REsp 1747230/PR). Ou seja, não só a existência de superfaturamento é requisito essencial para a configuração do ato de improbidade previsto no inciso VIII do artigo 10, como a efetiva prestação do serviço impede a condenação do agente ao ressarcimento dos valores.

Mas, então, nesses casos, não há ato de improbidade? Não necessariamente. Veja que, nos termos do inciso V do artigo 11 da Lei nº 8.429/92, configura ato de improbidade que atenta contra os princípios da Administração Pública a conduta de “frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros”.

Enquadrada a conduta também nesse dispositivo, que não exige a demonstração de efetivo dano ao erário, mas somente a intenção do agente de, com seu ato, obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade (§1º do artigo 11) [3], nada impede a condenação do agente por ato de improbidade. O que aqui se buscou demonstrar é que, nos casos em que a contratação não gerou prejuízos efetivos ao erário, impossível o enquadramento do ato na hipótese do inciso VIII do artigo 10.

 


[1] O legislador, com a Lei nº 14.230/21, incluiu ao final da redação do dispositivo a exigência de que o ato enseje perda patrimonial efetiva.

[2] GUIMARÃES, Bernardo Strobel; SOUZA, Caio Augusto Nazário de; VIOLIN, Jordão; MADALENA, Luis Henrique. A nova improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 100.

[3] Sobre a questão, ver GUIMARÃES, Bernardo Strobel; SOUZA, Caio Augusto Nazário de; VIOLIN, Jordão; MADALENA, Luis Henrique. A nova improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 120-121.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-ago-17/opiniao-dano-erario-acoes-improbidade