Diego Schuster: Do critério topológico ao conteúdo da decisão

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É verdade, o fato de a lei conferir um tratamento diferenciado para determinada situação não significa, por si só, violação ao princípio da igualdade ou um privilégio. Ademais, a discriminação jurídica pode ter fundamento numa situação de desvantagem, vulnerabilidade ou subordinação.

Na questão da ação rescisória, por exemplo, a mais pesada crítica feita pela doutrina civilista recai sobre o fato de o novo CPC não exigir da União, dos estados do Distrito Federal dos municípios, assim como das respectivas autarquias e fundações de direito público, ao Ministério Público e à Defensoria, o depósito prévio (artigo 968, §1º). Na parte que mais perto interessa à problemática: “O artigo 968, §1º, discrimina o particular em face de tais entes, que se sentem a partir daí livre para abusar da ação rescisória. A norma é inconstitucional: viola, de forma gritante, o princípio da igualdade. Daí que se perdeu uma grande oportunidade para corrigir esse descalabro no novo Código” [1].

Nada justifica, em tese, um tratamento diferenciado entre as partes. O mesmo se verifica na questão acerca do termo inicial para a contagem do prazo decadencial. Acredita-se que o escopo da norma prevista no artigo 525, §15 (assim como no artigo 535, §8º, do Código de Processo Civil) é “afastar a eficácia condenatória do título judicial”. Acontece que a ação rescisória, com fundamento em lei declarada (in)constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, vai além disso: “o escopo da ação rescisória é atacar a coisa julgada inconstitucional”. Trata-se, pois, de “um mecanismo de afirmação das decisões do STF em controle de constitucionalidade e na interpretação das normas constitucionais” [2].

A tese de que os artigos 525 e 535 versam apenas sobre matéria de defesa do executado aposta num critério topológico para estabelecer tal distinção. Dentro disso, alega-se que “o fator de discrímen é, justamente, o fato de que a parte exequente, vencedora na ação originária, não suporta os reflexos da eficácia condenatória do título judicial”; e, a partir dessa premissa lógica, a conclusão: “não sendo a parte autora a destinatária da ação rescisória prevista no artigo 525, §15, ou no artigo 535, §8º, ambos do Código de Processo Civil, ela não pode se beneficiar do termo inicial nele definido para a propositura da ação rescisória”. (TRF4, ARS 5030040-27.2020.4.04.0000, 3ª Seção, relator Sebastião Ogê Muniz, juntado aos autos em 26/08/2021).

A finalidade da ação rescisória, como já se viu, é atacar a coisa julgada inconstitucional, logo, o que importa é o conteúdo da decisão rescindenda (critério material, e não critério topológico). A ação anulatória, por exemplo, embora prevista no mesmo capítulo, não se confunde com a ação rescisória (CPC, artigo 966, §4º). O critério topológico não resiste a uma análise constitucional. Tomamos como exemplo o Tema 810/STF, o título é condenatório para o segurado também, pois a ele não foi dado o que lhe era devido, na sua integralidade.

Destarte, ele sofre, sim, os reflexos de um título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional. Tanto é assim que, se a decisão transitar em julgado após a decisão paradigma, será possível a discussão sobre o índice de correção em sede de cumprimento de sentença. Tem-se, portanto, a inexiquibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação, conforme os artigos 525, §§12 e 14, e 535, §§5º e 7º, do CPC/2015.

Enfim, uma coisa são os meios de defesa do executado; outra, bem distinta, é a ação rescisória em face da coisa julgada inconstitucional. Aqui não há como justificar um tratamento diferenciado, em favor da Fazenda/INSS, sob pena de violação ao princípio da isonomia, quer dizer, não há circularidade em interpretar uma lei supondo que ela não deva atender ao princípio da igualdade. É preciso registrar que, diferentemente do depósito, o CPC não faz nenhuma distinção entre autor e INSS ou credor e devedor, tampouco a doutrina. Então é o intérprete da lei que está apostando no critério topológico, o que vem gerando um estado de descrença e decepção generalizada. Nesse sentido é o voto divergente do desembargador Paulo Afonso Brum Vaz:

Antes de tudo, compartilho da premissa de que a ação rescisória, com fundamento no artigo 525, §15, e 535, § 8º, do CPC/15, pode ser proposta por quaisquer das partes (seja credor, seja devedor).
A sentença inconstitucional (especialmente aquela fundada em inconstitucionalidade declarada pelo STF em momento posterior à sua prolação) não pode ser rescindível para uma das partes e, ao mesmo tempo, irrescindível para a outra pelo simples pelo fato de sua previsão legal estar topograficamente situada em dispositivo relativo à impugnação ao cumprimento de sentença — técnica, aliás, mal empregada pelo legislador.
O vício rescisório atinge a higidez do título executivo judicial em si, e não a qualidade da obrigação por ele reconhecida [3].

Por outro lado, podemos defender a inconstitucionalidade dos artigos 525 §15 e 535 §8º do CPC, com o objetivo de (re)combinar os sentidos. Nesse ponto, compartilhamos da preocupação exposta por Taís Schilling Ferraz: “A insegurança jurídica gerada pela possibilidade de que muitos anos após o trânsito em julgado de uma ação individual, seja possível a reversão do decidido, porque o STF decidiu, num caso paradigma, de forma diversa sobre o tema constitucional, será confrontada com a necessidade do tratamento isonômico dos destinatários da norma […]” [4].

Além dos dois anos a contar do trânsito em julgado da decisão rescindenda previstos na regra geral (artigo 975), os artigos 525, §15, e 535, §8º, do CPC autorizam a reabertura do prazo a contar da data do trânsito em julgada da decisão do STF, ou seja, não existe um limite máximo, o que é fonte de insegurança jurídica.

Nessa perspectiva, não se pode concordar que defender a aplicação dos artigos para todos, exequente e executado, seria como tentar justificar um erro com outro erro. Erro maior consiste em: mesmo concordando com a inconstitucionalidade dos dispositivos em foco, ainda assim, privilegiar apenas a Fazenda Pública com a possibilidade de muitos anos após o trânsito em julgado propor uma ação rescisória. Aqui a afronta ao princípio da igualdade não constitui o menor dos males, mas, pelo contrário, o maior. Para Teresa Arruda Alvim, a segurança jurídica ligada ao princípio da isonomia deve prevalecer sobre a segurança decorrente da coisa julgada.

Quando se reabre esse tipo de discussão, verifica-se que não estamos fazendo uma interpretação com base em argumentos de princípio. Minha intenção, aqui, não é oferecer uma resposta irresistível, mas convidar o leitor à reflexão.

É possível se afirmar que, em sede de cumprimento de sentença, os artigos 525 e 535 do CPC versam apenas sobre matéria de defesa do executado; mas não que o prazo para propositura de ação rescisória por violação à norma constitucional, previsto nos §§15 e 8º dos respectivos dispositivos, vale apenas para a Fazenda. A primeira coisa que se deduz de duas coisas é que não são a mesma. Assim, por exemplo, temos a ação rescisória com fundamento em manifesta violação à norma jurídica ou precedente (CPC, V, §§5º e 6º) e, também, a ação rescisória com fundamento em lei declarada (in)constitucional pelo STF (CPC, artigos 525, §§12 e 15, e 535, §§5º e 8º).

Os artigos supramencionados são invocados para inibir tanto a execução como para fundamentar a ação rescisória. Assim, se o título transitar em julgado após a decisão paradigma do STF poderá ser adequado em sede de cumprimento de sentença. Se caso, contudo, o título transitar em julgado antes da decisão paradigma, será cabível a ação rescisória, devendo o termo inicial do prazo decadencial inicial a contar do trânsito em julgado da decisão do Supremo Tribunal Federal.

O STF já afirmou que, diferente da lei infraconstitucional, a lei constitucional “não é lei qualquer, mas a lei fundamental do sistema”, logo, que não pode gerar duas ou mais interpretações razoáveis, porém, apenas uma “interpretação jurídica correta”. (STJ, EDiv no Resp 608.122/RJ, 1ª Seção, j. 09.05.2007, relator ministro Teori Zavascki). As decisões do Supremo Tribunal Federal são aptas à desconstituição das decisões transitadas em julgado que lhes são contrárias. Não há dúvidas de que a interpretação do STF deve prevalecer, quer dizer, para corrigir uma decisão inconstitucional, independentemente de quem seja a parte.

Seja como for, considerando a doutrina que defende a inconstitucionalidade dos 525, §15, 535, §8º, do CPC (e com ela concordo, dada a insuperável inconstitucionalidade), o presente artigo tenta conciliar estes dois pontos de vista, vale dizer: concordamos com a inconstitucionalidade dos artigos e, com muito maior razão, sua aplicação apenas em favor da Fazenda/INSS (o que viola o princípio de igualdade).

Dentre as melhores interpretações, no sentido de compatibilizar os dispositivos com a Constituição (que garante os direitos fundamentais à segurança jurídica à coisa julgada) e com o sistema processual estabelecido pelo próprio Código (que estabelece termo inicial diferenciado para a contagem do prazo de dois anos em caso de descoberta da prova nova, mas limita ao prazo máximo de cinco anos, contando do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo), está:

“[…] o §15 do artigo 525 e o §8º do artigo 535 do CPC devem ser interpretados conforme à Constituição para admitir o cabimento de ação rescisória quando a obrigação reconhecida em decisão judicial transitada em julgado for fundada em lei ou ato normativo considerado supervenientemente inconstitucional pelo STF, ou fundada em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido posteriormente pelo STF como incompatível com a Constitucional Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso, e os efeitos não forem atingidos por modulação, em atenção à segurança jurídica, ‘cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal’, mas limitado ao prazo máximo de cinco anos, contado do trânsito em julgado da última decisão referente à questão sobre a qual versa a ação rescisória.” [5]

Buscamos, assim, um “meio-termo” que respeite tanto o princípio da segurança jurídica como da igualdade; buscamos, assim, por critérios que estão no Direito. O “meio-termo” significa a equidistância em relação aos extremos [6]. Espero avançarmos no debate: seria tão óbvia a questão, no sentido de que os artigos em foco somente guardam relação com o executado (Fazenda), digo, a ponto de não merecer nenhum parágrafo na doutrina especializada?

 

 

[1] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sério Cruz; MITIDIERO, Daniel. O novo processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 579.

[2] FERRAZ, Taís Schilling. O precedente na jurisdição constitucional: construção e eficácia do julgamento da questão com repercussão geral. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 114.

[3] TRF4, ARS 5030040-27.2020.4.04.0000, TERCEIRA SEÇÃO, Relator SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ, juntado aos autos em 03/11/2021.

[4] FERRAZ, Taís Schilling. O precedente na jurisdição constitucional: construção e eficácia do julgamento da questão com repercussão geral. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 113.

[5] SANTOS, Welder Queiroz dos. Ação rescisória por violação a precedente. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 214.

[6] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 5. ed. São Paulo: Martin Claret, 2011. p. 43.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-ago-11/diego-schuster-criterio-topologico-conteudo-decisao