Entrevista: Celso Vilardi, advogado criminalista

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A implementação do juiz das garantias não representa uma panaceia para os muitos males do sistema penal brasileiro. Contudo, é inegável que irá promover significativo avanço para a garantia dos direitos dos acusados. 

Assim resume o criminalista Celso Vilardi a sua opinião sobre o juiz das garantias. O Supremo Tribunal Federal retomará, no dia 9 de agosto, a análise de constitucionalidade do instituto. 

“É um sistema melhor. Isso não quer dizer efetivamente que um juiz seja parcial ou tenha presunção de parcialidade ou de imparcialidade. Quer dizer que uma pessoa que está conduzindo um trabalho desde o início pode ter, no início da ação penal, uma opinião formada”, explica em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico

Vilardi defende que a implementação do juiz das garantias é ainda mais importante em países como o Brasil, que tem um histórico de operações espetaculosas que acabam anuladas pelo Judiciário. Segundo ele, é o custo das consecutivas nulidades de ações penais que deve ser considerado, e não simplesmente o provável aumento do número de juízes que a medida deve provocar. 

“Será necessário talvez aumentar um pouco o número de juízes. Mas ainda que esse impacto fosse muito forte, o que está em jogo é a questão da efetividade do processo penal. Quando você verifica grandes operações como a ‘castelo de areia’ e agora a ‘lava jato’, veja o custo que tudo isso teve para o Estado e depois isso acabou sendo anulado por completo”, argumenta. 

Leia a entrevista: 

ConJur — A implementação do juiz de garantias será benéfica para o nosso sistema de justiça? Por quê?
Celso Vilardi — Eu penso que vai ser extremamente benéfico para o nosso sistema de justiça. A questão do juiz das garantias já é, em si própria, uma evolução processual. Porque o juiz que trata a investigação acaba se envolvendo muito com ela. E a ideia de um juiz, vamos dizer assim, que está absolutamente virgem em relação ao caso, como o juiz principal, já é em si muito boa, na minha opinião. Já é um avanço no sistema processual. Particularmente no Brasil, vai ser algo ainda mais importante porque, como todos nós sabemos, o país tem uma tradição muito ruim de verificar investigações anuladas. 

As grandes investigações que ocorreram no Brasil acabaram sendo efetivamente anuladas pelo poder Judiciário. E isso demonstra, ao contrário do que se diz que isso seria algo que pode burocratizar o processo, que é uma alteração desnecessária. Porque quando você pega o histórico dessas grandes operações, verifica que muitas delas foram anuladas justamente porque houve uma proximidade muito grande do juiz que julga a causa com a fase de inquérito e as medidas cautelares e preparatórias à ação penal. Isso faz com que o juiz já tenha uma avaliação pré-concebida da causa. E isso prejudica a instrução. Então me parece que um magistrado independente poderá ter mais espaço para corrigir os rumos do processo penal, anulando algumas coisas e terminando a ação de uma forma mais satisfatória para a sociedade. 

ConJur — O texto aprovado que instituiu o juiz de garantias, na sua opinião, precisa de ajustes? 
Celso Vilardi — Não, ele não precisa propriamente de ajustes. Talvez ele precise de uma modulação. Todos nós sabemos que existem questões significativas que estão sendo exploradas, até por muitas pessoas que se posicionam contra o juiz das garantias, que é a questão das comarcas pequenas, a dificuldade de implementação do sistema no país como um todo. Mas eu acredito que isso será modulado pelo Supremo Tribunal Federal. 

ConJur — Muito se fala do custo orçamentário da implementação do juiz das garantias. É um custo que vale a pena ser pago? 
Celso Vilardi — É um custo que vale a pena ser pago. Eu sinceramente não tenho dados específicos a respeito desse custo, mas consigo verificar que, por exemplo, aqui em São Paulo, nós já temos há muito tempo o Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo), que já existe há muito tempo.

Então eu vejo que nas cidades grandes isso não será nenhum problema. E nós teremos aí, talvez, uma questão relacionada novamente às comarcas menores. Mas há modos de se fazer isso. É possível, por exemplo, utilizar um juiz de uma comarca que funcione como o juiz do inquérito policial e outro juiz funcione como o juiz da ação principal. E vice-versa. Claro que haverá algum impacto orçamentário, é inegável. Será necessário talvez aumentar um pouco o número de juízes, mas ainda que esse impacto fosse muito forte, o que está em jogo é a questão da efetividade do processo penal.

Quando você verifica grandes operações como a “castelo de areia” e agora a “lava jato”, veja o custo que tudo isso teve para o Estado e depois isso acabou sendo efetivamente anulado por completo. Esse é o custo que as pessoas não colocam, mas que tem que entrar no jogo. Ter, às vezes, três, quatro anos de investigação e depois ter ações anuladas.

ConJur — O juiz das garantias poderia ter ajudado a evitar esse verdadeiro tsunami de anulações dessas grandes operações ou é um problema mais estrutural?
Celso Vilardi — Essa é uma pergunta bastante complexa. Eu acho que o Brasil viveu por muitos anos com um problema que está, eu diria, ligado às nossas próprias origens, que são privilégios da classe dominante, da elite, e uma efetividade do processo penal em relação às pessoas mais pobres. Então essa impunidade faz parte da nossa história. A impunidade da elite. E isso faz com que, em grandes investigações que atingem a elite, os investigadores muitas vezes passem um pouco da linha. Eles acabam se envolvendo demais com a investigação e, geralmente, o juiz que autoriza as medidas no inquérito policial é o próprio juiz que vai julgar a causa. Então não seria correto dizer que o juiz das garantias vai eliminar o problema de erros nas investigações.

Contudo, eu tenho certeza que, com a implementação do juiz das garantias, isso tende a diminuir consideravelmente. Porque quando se inicia uma investigação, decreta as medidas cautelares, após essas medidas, após a conclusão do inquérito vem o processo penal. E no processo penal atual se tem uma manifestação da defesa, chamada resposta à acusação, em que a defesa pode alegar tudo aquilo que interessa para o réu. Portanto, as medidas relativas ao inquérito, ainda na fase inicial do processo, podem ser discutidas, e o juiz que não está atrelado àquelas investigações tem mais independência para julgar e para reconhecer alguns erros.

Quando ocorrer um eventual erro no início do processo, ele pode ser reparado pelo Estado. Quando hoje o processo é julgado, vai para segunda instância, às vezes acontece uma anulação no Superior Tribunal de Justiça ou no Supremo. O tempo já transcorreu, e é muito difícil recolocar aquela investigação de pé. Então é óbvio que não dá para dizer que não vão acontecer erros. Isso faz parte do ser humano, faz parte do nosso dia a dia. Mas quando vem um juiz que não participou da investigação, ele tem uma visão mais isenta, para começar o processo penal de forma mais correta. O juiz que decretou uma interceptação telefônica durante um inquérito não vai anular a sua própria decisão. Se ele deferiu, é porque entende que ela está correta. O processo começa, vai se desenvolvendo, as coisas vão caminhando, e é o mesmo juiz que se pronunciou anteriormente. Então há uma tendência de se reconhecerem eventuais erros na investigação e se ter um processo mais centrado e de acordo com as regras.

ConJur — O instituto do juízo das garantias fere o princípio da unicidade do juízo natural?
Celso Vilardi — Não. O princípio do juiz natural tem, constitucionalmente falando, que obedecer as regras do Estado Democrático de Direito que está previsto na Constituição e disciplinado pelo Código de Processo Penal. A partir do momento em que há uma lei que designa um juiz para o inquérito e um juiz do processo, juiz natural é aquele designado para cumprir uma destas funções. Se não fosse assim, nós estaríamos em São Paulo já há muitos anos trabalhando sobre o prisma da inconstitucionalidade. Porque aqui em São Paulo, quando se instaura o inquérito policial, quem despacha qualquer decisão inerente ao inquérito é o juiz do Dipo. Já existe aqui o juiz das garantias, está implementado há muitos anos. E, depois que o inquérito é distribuído como eventual denúncia, ele é distribuído para o juiz natural, que é um juiz de uma vara criminal que vai instruir o processo e julgar. 

O Judiciário tem que estabelecer regras sobre quais são os juízes competentes para julgar determinadas ações. Veja, eu posso dar até outro exemplo: qualquer juiz criminal da Justiça Federal seria competente para julgar uma ação de lavagem de dinheiro no âmbito federal. No entanto, quando editada a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998), nós tivemos a criação das varas especializadas. Ninguém tratou isso como uma inconstitucionalidade. Simplesmente tinha uma meta de distribuição para uma vara especial. Então se há uma lei federal que coloca um juiz para ser o competente para analisar as questões de inquérito e outros pelo processo, não tem nenhuma inconstitucionalidade. Repito: se isso for inconstitucional, todos os processos criminais julgados na cidade de São Paulo seriam, portanto, inconstitucionais, por conta do Departamento de Inquéritos Policiais.

ConJur — O juiz das garantias invade a competência do Ministério Público na função de custos legis?
Celso Vilardi — Não. É verdade que a própria Constituição diz que o Ministério Público tem papel de custos legis. Mas nós não podemos esquecer que o Ministério Público, apesar de ter essa prerrogativa de funcionar como custos legis, no processo penal é parte, assim como o réu é parte. E parte quer dizer parcialidade. Então o Ministério Público costuma ser parcial porque defende uma tese acusatória, assim como a defesa também é parcial, porque defende uma tese defensiva, e tem um juiz para julgar. Então eu não vejo uma substituição do Ministério Público.  

O fato que vai mudar é que vão ter dois juízes. Agora, tem o papel constitucional dele, que é julgar a causa e escolher o melhor direito numa disputa contenciosa entre duas partes. Então, se o juiz indeferir uma pretensão do Ministério Público, ele não está fazendo papel de custos legis, ele está fazendo o papel de decidir em determinada faceta da causa a favor de umas das partes. Pode decidir contra a defesa ou pode decidir contra a acusação. Esse é o jogo do processo penal. Então continua a mesma coisa. A única coisa que vai mudar é que o juiz que vai julgar a causa não terá participado das medidas do inquérito policial, o que o preserva, o deixa numa posição de maior independência.  

ConJur — O juiz das garantias pode atrasar o andamento dos processos?
Celso Vilardi — Olha, numa resposta simplista, pode-se se dizer que sim, em função de uma nova organização judiciária que precisará ser implementada. Mas se houver uma organização judiciária, isso não vai contribuir para atrasar o andamento dos processos. Eu tenho impressão que, depois que as coisas começarem a funcionar, não vai ter atraso nenhum. Hoje, por exemplo, nos processos penais na cidade de São Paulo, não temos muitos problemas. O Tribunal de Justiça já teve muitos acúmulos de processo, os processos demoravam muito para serem julgados. Hoje o processo penal aqui em São Paulo é relativamente rápido. 

Com a organização do Judiciário, não há que se falar em demora. Toda mudança provoca um certo temor. Então nós temos que passar pela fase da mudança. Mas os benefícios são maiores.

ConJur — Em seu voto, o ministro Luiz Fux argumentou que a presunção de parcialidade do juiz que atuou na investigação para proferir uma sentença não tem fundamento. O senhor concorda com essa linha de argumentação?
Celso Vilardi — Não concordo. Eu respeito muito o ministro Fux, que tem uma longa prática na magistratura brasileira. Já passou por todos os cargos possíveis da magistratura. Respeito muito a posição do ministro, mas não concordo com ela. Diria para você que, com quase 34 anos de advocacia, a minha opinião é diametralmente contrária. Não estou com isso querendo dizer que os juízes são parciais. Não é isso. É que eu penso que um juiz que se envolve com investigação e determina medidas está fazendo isso, na melhor das intenções, com uma certa parcialidade. Mas o processo criminal é um processo que envolve culpa ou inocência, um processo que envolve seres humanos, é um processo que tem um jogo que trabalha sempre com a liberdade de uma pessoa e com uma vítima. Então isso provoca emoções. 

Costumo dizer o seguinte: Direito é uma ciência humana, e é uma ciência tão humana que mesmo quem não fez faculdade de Direito tem uma opinião formada a respeito da culpa ou da inocência em determinado caso. Isso mexe com a cabeça, mexe com a criação, mexe com os conceitos, mexe com tudo, com várias coisas do ser humano. Isso acontece com a população em geral e também acontece com o juiz, é normal. Então quando você vai conduzindo a investigação, você passa a ter uma certa opinião formada sobre aquilo. E muitas vezes essa opinião é tão forte que, quando o processo começa, o juiz está convencido da responsabilidade do acusado. E esse é o grande fator que provoca nulidades. Porque quando o sujeito está convencido, por mais imparcial que seja, passa a atuar, mesmo que inconscientemente, com aquele convencimento que está dentro dele. E isso faz com que ele possa pender para um determinado lado.

Essa é a beleza, essa é a razão principal que o juiz das garantias pode diminuir esse problema. Porque o juiz não participou de tudo aquilo. Então ele ainda não está contaminado. Ele vai receber uma ação, ele vai olhar uma denúncia, ele vai olhar uma defesa e, a partir daí é que ele vai começar a tirar conclusões. 

É um sistema melhor. Isso não quer dizer efetivamente que um juiz seja parcial ou tenha presunção de parcialidade ou de imparcialidade. Quer dizer que uma pessoa que está conduzindo um trabalho desde o início pode ter, no início da ação penal, uma opinião formada. O que não é salutar. O ideal é que o juiz tenha uma opinião no momento da sentença, depois da instrução, depois do contraditório, depois das provas. Nós não podemos esquecer que o contraditório pleno se exerce na ação penal. Muitas vezes os casos chegam para uma ação penal sem qualquer tipo de manifestação da defesa ou com poucas manifestações na defesa. Então, na verdade, o inquérito tem uma atuação maior do Ministério Público do que do advogado de defesa. Por isso é bom que seja um novo juiz que analise o caso.

ConJur — O juiz das garantias poderia ter ajudado a disciplinar o instituto das delações premiadas?
Celso Vilardi — Esse é mais um elemento em que o juiz das garantias poderia efetivamente ajudar. Repito, não vai eliminar o problema. Não vamos trabalhar como se o problema não existisse, como se ele não fosse existir a partir da implementação do juiz das garantias. Mas é o mesmo princípio, porque muitas das delações acontecem na fase de inquérito. O Ministério Público propõe uma denúncia. Aí um juiz que não teve contato com o caso vai ter um novo olhar a respeito de todo o cenário, o que tende a diminuir os problemas.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-jul-30/entrevista-celso-vilardi-advogado-criminalista