Thiago Duca: Tokenização de ativos, "floresta em pé" e ESG

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O avanço da tecnologia vem promovendo disrupções na sociedade pós-moderna em lapsos temporais cada vez mais exíguos. Neste contexto, o processo de digitalização de ativos torna-se corriqueiro, sobretudo pela facilidade e segurança das transações com bens e direitos intangíveis.

Toda e qualquer atividade, mercadoria, serviço, obra de arte, ativo, etc. pode passar pelo processo de tokenização. Trata-se de um processo (instrumento) que digitaliza um fato do mundo fenomênico, como a compra e venda de mercadorias, a venda de uma safra futura, a aquisição de uma obra de arte, dentre outras infindáveis transações realizadas no cotidiano, sendo que a incidência tributária (ou qualquer outra relação jurídica) se dá pela operação que dá azo àquele bem, serviço que foi tokenizado.

Logo, tokenização é a instrumentalização [1], via digitalização, de um bem ou direito, que pode ser objeto de negócio jurídico no mundo fenomênico.

A Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) publicou interessantes considerações sobre o assunto, em texto intitulado “Tokenização de Ativos: conceitos iniciais e experimentos em curso” [2]. Conforme o estudo, tal “tecnologia possibilita que valores mobiliários, commodities e ativo quaisquer (financeiros e não financeiros) sejam convertidos em ativos digitai criptografados, registrados e transacionados em uma rede descentralizada”.

Neste diapasão, a digitalização de ativos abriu uma enorme gama de oportunidades de negócios, especialmente no atual momento em que o mercado, a sociedade, o governo, quanto os demais stakeholders estão cada vez mais envolvidos nos resultados decorrentes dos processos decisórios das empresas, atentando-se à adoção das melhores práticas no âmbito empresarial e aos impactos que estas decisões podem gerar em qualquer instância, seja em nível de recolhimento de tributos, das relações de trabalho, das interações com o meio ambiente, etc.

Daí, a governança [3] surgiu como um conjunto de mecanismos adotados para gerenciar as relações entre os stakeholders e para determinar e controlar a orientação estratégica e o desempenho das organizações.

Nesta linha, a responsabilidade econômica, ambiental e social, materializada pelo ESG [4], é tema que encabeça os debates atuais e exerce forte influência em diferentes tipos de negócios e investimentos, além de atrair cada vez mais o interesse dos investidores.

Assim, a gestão e comercialização de ativos florestais, dentre eles a “floresta em pé”, por meio de ativos digitais é prática que vem ganhando força no mercado e os impactos tributários e contábeis são bastante relevantes, como será demonstrado.

“Floresta em pé” nada mais é do que árvores plantadas em determinada propriedade objeto de transação para diversas finalidades, por exemplo, obtenção de madeira, frutos, dentre outros subprodutos. Com o mercado de crédito de carbono aquecido, muitas vezes empresas adquirem a “floresta em pé” para preservá-las, adequando-se aos requisitos do ESG, e como subproduto, valem-se dos créditos de carbono gerados para negociações no mercado, ponto este que não será abordado neste artigo, pois merecedor de apontamentos próprios.

O Código Civil de 2002 trata a “floresta em pé” enquanto bens imóveis, como se vê:

“Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.”

Observe-se que a Lei Civil considerou a “floresta em pé” como um bem imóvel, classificação esta que terá impactos tanto tributários quanto contábeis. O Parecer Normativo CST nº 108/1978 [5], que formulou disposições gerais de classificação de determinadas contas, na escrituração comercial, fez as seguintes considerações:

Conforme o Parecer Normativo, a “floresta em pé” é considerada como ativo permanente (imobilizado) e, seus frutos (sementes, madeira, frutas, entre outras) são produtos agrícolas que devem ser contabilizadas no estoque como mercadorias, passíveis de incidência de ICMS [6].

Neste diapasão, o acórdão 3201­000.934 [7] – 2ª Câmara/1ª Turma Ordinária do Carf entendeu que “(…) segundo o citado Parecer CST, os empreendimentos florestais, independentemente de sua finalidade, devem ser considerados integrantes do ativo permanente, em nada desrespeitando o art. 179 da Lei. 6404/1976”.

Logo, o proprietário (quem realizou o plantio) da “floresta em pé”, vai escriturá-la como um ativo imobilizado, subconta do ativo não circulante. Já o adquirente da “floresta em pé”, com o objetivo de enquadramento nas melhores práticas de governança (ESG) atualmente exigidas pelo mercado, contabilmente, vai escriturá-la enquanto um ativo biológico. Ficou a cargo do CPC 29 [8] “estabelecer o tratamento contábil, e as respectivas divulgações, relacionados aos ativos biológicos e aos produtos agrícolas”.

Nesta transação, é importante que no contrato de compra e venda disponha que o objeto é a própria “floresta em pé” (ativo biológico), para que fique bem claro que o objetivo contratual primeiro não são os frutos das árvores (madeira, celulose, dentre outros) que, como dito, são produtos agrícolas e verdadeiras mercadorias, com incidência do ICMS.

Entretanto, em que pese juridicamente ser considerada um bem imóvel, de maneira arbitrária e com claro viés arrecadatório, algumas Administrações Tributárias estaduais, por exemplo do estado de Minas Gerais, inovam no ordenamento jurídico criando novel interpretação para atrair a incidência de ICMS nas operações de compra e venda de “florestas em pé”, considerando-a, de maneira absurda, um “bem móvel por antecipação”, portanto mercadoria passível de incidência de ICMS e emissão de documento fiscal que dá guarida à operação. É o que se vê do excerto da recente Consulta de Contribuinte Nº 244/2021:

“(…)

Nesse diapasão, insta salientar que esta Diretoria possui entendimento no sentido de que a mata em pé é bem móvel por antecipação, do que decorre a sua caracterização como mercadoria e atrai a incidência do ICMS nas operações que promovam sua transferência. Nesse sentido, vide Consulta de Contribuinte nº 121/2011.

(…)”

Observa-se que o entendimento do estado de Minas ofende a jurisprudência do STJ, que, quando do julgamento do REsp nº 1.158.403/ES, em 2010, consolidou o entendimento pela não incidência do ICMS na compra e venda de “floresta em pé”, cujo trecho merece destaque:

A venda de árvores em pé, como modalidade da atividade gestão ativos florestais, não é fato gerador de ICMS e gravá-la consistiria em tributar etapa preparatória de possível operação mercantil, em prejuízo da legalidade tributária.” (REsp 1.158.403/ES, rel.: ministra ELIANA CALMON, 2ª Turma, DJe 22/9/2010)

No julgamento fica evidente a confirmação de que não há incidência de ICMS nos bens classificados no ativo não circulante, pois:

1) A “Floresta em Pé” não configura mercadoria;

2) Trata-se de bem do ativo não circulante;

3) É classificado como bem imóvel por natureza.

No caso do estado de São Paulo, o entendimento se coaduna com o posicionamento do STJ. Seguem ementas de algumas soluções de consultas realizadas pelos contribuintes e respondidas pela Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo:

“RESPOSTA À CONSULTA TRIBUTÁRIA 19902/2019

ICMS – Obrigações acessórias – Venda de plantação de eucaliptos (madeira em pé) – Corte realizado pelo adquirente – Inscrição estadual.

I. Não há incidência do ICMS na venda de plantação de eucaliptos (madeira em pé). O fato gerador do ICMS, bem como as demais obrigações fiscais correspondentes, somente ocorrerão no momento em que os eucaliptos cortados vierem a sair do estabelecimento que os produziu.

(…)

[…]

RESPOSTA À CONSULTA TRIBUTÁRIA 20018/2019

ICMS – Obrigações acessórias – Venda de floresta de eucaliptos (madeira em pé) – Nota Fiscal Eletrônica.

I. Não existe previsão de emissão de Nota Fiscal na operação de venda de plantação de eucaliptos ainda com as árvores em pé, com a responsabilidade pelo corte e retirada dos eucaliptos por conta do adquirente, tendo em vista esta operação não estar sujeita ao ICMS.

[…]

RESPOSTA À CONSULTA TRIBUTÁRIA 24070/2021

ICMS – Obrigações acessórias – Venda de plantação de eucaliptos (madeira em pé) – Corte realizado pelo adquirente – Inscrição estadual – Controle de estoque – Emissão de documentos fiscais.

I. Não há incidência do ICMS na venda de eucaliptos em pé. O fato gerador do ICMS, bem como as demais obrigações fiscais correspondentes, somente ocorrerão no momento em que os eucaliptos cortados vierem a sair do estabelecimento que os produziu.”

Pelos trechos em destaque fica claro que não há incidência de ICMS na compra e venda de “floresta em pé”, tampouco a obrigatoriedade de emissão de documento fiscal que dá suporte à transação, já que não se trata de operação envolvendo mercadoria. Reitera-se: (1) “floresta em pé” é bem imóvel e; (2) mercadorias são os frutos oriundos da “floresta em pé” eventualmente comercializados (madeira, frutos, celulose, etc.).

Feitos estes apontamentos, as negociações com ativos intangíveis representativos de “floresta em pé” não sofrem incidência de ICMS, já que tratam-se de verdadeira compra e venda de bem imóvel, bastando um contrato particular pactuado entre as partes para dar suporte a operação.

O adquirente da “floresta em pé”, num primeiro momento, compra um ativo biológico que futuramente poderá gerar frutos. Ainda, caso este contrato de compra e venda preveja que as despesas com a manutenção desta “floresta em pé” sejam assumidas, pormenorizadamente e discriminadamente pelo adquirente, este pode valer-se da dedução destas despesas da base de cálculo do IRPJ e CSLL caso seja optante pela tributação no lucro real, já que a Lei nº 4.506/64, em seu art. 47, prevê genericamente que aquelas despesas necessárias à atividade da empresa e a manutenção da respectiva fonte produtora podem ser deduzidas da base de cálculo do imposto de renda das pessoas jurídicas:

“Art. 47. São operacionais as despesas não computadas nos custos, necessárias à atividade da emprêsa e a manutenção da respectiva fonte produtora.

§ 1º São necessárias as despesas pagas ou incorridas para a realização das transações ou operações exigidas pela atividade da emprêsa.

§ 2º As despesas operacionais admitidas são as usuais ou normais no tipo de transações, operações ou atividades da emprêsa.

(…)

Conforme trecho colacionado, a legislação optou por lançar mão de termo genérico (“despesa necessária”) ao invés de listar taxativamente todas as despesas dedutíveis da base de cálculo do IRPJ/CSLL. Em termos de técnica legislativa, foi bem o legislador, já que, diante da evolução e da complexidade da sociedade, novas operações surgem a cada dia, e o processo legislativo não consegue acompanhar o desenrolar dos fatos sociais.

Desta forma, como não há um dispositivo legal expresso que determine que as despesas com ESG (ou outras tantas) são dedutíveis da base de cálculo do IRPJ/CSLL, ficou a cargo do intérprete do direito (autoridades fiscais, advogados, magistrados, doutrinadores, etc.) analisar se tal despesa enquadra-se enquanto “despesa necessária” diante do caso concreto.

A nosso sentir, despesas com ESG encontram-se no espectro de abrangência das ditas “despesas necessárias”, já que, a própria CRFB/88 impôs, tanto ao poder público quanto à sociedade, o dever de defender e preservar o meio ambiente, como consubstanciado no artigo 225:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações

(…)”

Nesse contexto, a dedutibilidade das despesas com ESG da base de cálculo do IRPJ/CSLL não é um benefício fiscal e sim um mandamento constitucional. Interpretar de modo diverso é colocar em risco não só a preservação do meio ambiente que nos circunda, mas também a continuidade das empresas já que, no atual mercado, cada vez mais atrela-se a imagem da empresa, e por consequência a procura de seus títulos mobiliários, a adoção de práticas ambientalmente sustentáveis e socialmente responsáveis.

Sob a ótica do PIS/Cofins, tributo incidente sobre o faturamento das empresas e que segue a sistemática da não-cumulatividade (instituído pelas Leis 10.833/03 e 10.637/02, com base no artigo 153,§3º, II, da CRFB/88), descontando-se determinados créditos para apuração do quantum debeatur, recentemente o Carf reconheceu o direito ao creditamento sobre despesas incorridas no cumprimento de obrigações ambientais [9].

No caso, deu-se provimento ao recurso voluntário interposto pelo contribuinte, reconhecendo o direito ao crédito relativo a todas as despesas incorridas nas prestações de serviços vinculados à preservação do meio ambiente, mas que decorreram de imposições veiculadas em Acordo Judicial de Conduta e dos Termos de Ajuste de Conduta celebrados com Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e Fatma.

Logo, o creditamento foi permitido de forma condicional, já que decorrente de imposições do poder público e da boa-fé do contribuinte, que não poderia agir de forma distinta.

Em que pese seja mais um precedente alinhado com o julgamento do STJ [10] que definiu que o conceito de insumo para fins de creditamento com base nos critérios de essencialidade e relevância, tal decisão não dá guarida ao creditamento de despesas contraídas voluntariamente pelas empresas com o intuito de enquadramento nas melhores práticas de ESG.

Portanto, não aconselha-se a tomada de créditos de PIS/Cofins das despesas contratuais de manutenção da “floresta em pé”. Contudo, a questão é gerencial e fica a cargo do adquirente analisar os riscos e tomar a decisão que melhor o aprouver.

 


[1] Os tokens são chaves eletrônicas, ou pedaços de códigos, que representam algum tipo de ativo. Essa tecnologia surgiu a partir dos blockchains desenvolvidos em 1991 por Stuart Haber e W. Scott Stornetta.

Existem ainda os Non-fungible tokens (NFTs) que representam ativos originais insubstituíveis e por isso garantem a autenticidade e confiabilidade do token.

[3] De acordo com o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa “”.. é o sistema pelo qual as organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre os proprietários, Conselho de Administração, Diretoria e órgãos de controle”.

[4] Sigla em inglês que significa Environmental, Social and Governance (Ambiental, Social e Governança)

[6] Para que determinado bem seja considerado mercadoria, todos estes requisitos devem ser preenchidos:

(a) Pactuação de negócio jurídico relevante(operação);

(b) transferência de titularidade (circulação);

(c) de bem móvel posto à mercancia com habitualidade (mercadoria);

(d) a ser verificado (circulação) quando perfectibilizada a tradição da mercadoria.

[9] Acórdão nº 3301-005.605 (1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 3ª Seção)

[10] RESP nº 1.221.127/PR

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-jul-13/thiago-duca-tokenizacao-ativos-floresta-pe-esg