Julio Oliveira: A garantia do produto e a retirada na assistência técnica

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O artigo 50 do CDC estabelece que “a garantia contratual é complementar à legal e será conferida mediante termo escrito”. Já o parágrafo único do mesmo artigo dispõe que “o termo de garantia ou equivalente deve ser padronizado e esclarecer, de maneira adequada em que consiste a mesma garantia, bem como a forma, o prazo e o lugar em que pode ser exercitada e os ônus a cargo do consumidor, devendo ser-lhe entregue, devidamente preenchido pelo fornecedor, no ato do fornecimento, acompanhado de manual de instrução, de instalação e uso do produto em linguagem didática, com ilustrações”[1].

Percebe-se que a garantia contratual é uma faculdade do fornecedor. Para ser efetivada, o fornecedor deve apresentar um termo de garantia padronizado, estabelecer o modo, o lugar e a forma de exercício de seu direito. Ademais, como a garantia contratual é facultativa, ela pode ser dada somente sobre partes do produto.

O artigo 24 estabelece que “a garantia legal de adequação do produto ou serviço independe de termo expresso, vedada a exoneração contratual do fornecedor”. É uma obrigação imposta por lei ao fornecedor. Muitos estabelecimentos utilizam a publicidade — “90 dias de garantia” — como se fosse uma benesse, mas não passa de uma imposição legal prevista no CDC, que é norma de ordem pública. A garantia legal não pode ser afastada nem por convenção entre as partes[2].

Esses dispositivos também são ponto de divergência na doutrina e na jurisprudência. Alguns entendem que o prazo da garantia contratual só começa a fluir depois de esgotado o prazo da garantia legal; outros entendem o contrário; e há, ainda, aqueles que entendem que os prazos devem ser somados (garantia legal + garantia contratual).

O entendimento que tem prevalecido no STJ é o de que os prazos devem ser somados, ou seja, enquanto não expirar o prazo da garantia contratual, não começa a fluir o prazo da garantia legal (REsp 547.794, rel. min. Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, Dje 22/2/2011).

Entende-se que, com a adoção do critério de vida útil do bem, tal discussão perde relevância. Conforme afirmado anteriormente, o critério de vida do útil do bem, utilizado nos vícios ocultos, se baseia na durabilidade de um produto, ou seja, no tempo de vida que aquele produto deve durar. Esse tempo de vida é variável de produto para produto. Se o critério de vida útil for adotado em casos de vício oculto, esse prazo pode ultrapassar, em muito, o de garantia legal e contratual.

Esse é o atual entendimento de Leonardo Roscoe Bessa, que assim dispõe: “Portanto, o art. 50 do CDC não deve ser interpretado no sentido de que os prazos de garantia legal e contratual devem ser somados. Para proteger os interesses patrimoniais e morais do consumidor em relação a vícios ocultos dos produtos, basta utilizar o critério de vida útil”[3].

Outra discussão importante acerca da garantia dos produtos é a questão do prazo para retirá-los do conserto. O Código de Defesa do Consumidor não prevê data para o consumidor retirar o produto da assistência técnica, após o efetivo reparo, o que tem gerado bastante controvérsia na doutrina e nos órgãos de defesa do consumidor. É perfeitamente legal que a assistência técnica estipule um prazo para a retirada do produto após o reparo, prazo este que deve ser respeitado pelo consumidor.

Desse modo, se não há determinação expressa sobre o que a assistência técnica deverá fazer quando um produto é “esquecido” no seu estabelecimento, deve-se buscar amparo em outros diplomas legais. Os institutos que têm sido usados analogicamente são o abandono, a descoberta, o depósito, todos do Código Civil, e o procedimento das coisas vagas previsto no CPC.

Se um produto é deixado em qualquer estabelecimento para reparo, melhoria, troca, orçamento, avaliação ou qualquer outro serviço, e não é retirado, pode-se pensar que ocorreu o abandono do bem (Res derelicta). Todavia, não pode existir esse entendimento, eis que o abandono não se presume; deve, necessariamente, existir a intenção de abandonar.

A perda da coisa, nos termos do artigo 1.275 do Código Civil, pode se dar por alienação (venda ou doação), renúncia, perecimento da coisa, desapropriação ou abandono.

Aqueles estabelecimentos que estipulam pena de perdimento de bens estão agindo de forma ilegal, em desacordo com o artigo 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor. A cláusula constante no orçamento prévio que autoriza a apropriação do patrimônio alheio é abusiva, logo, é considerada nula de pleno de direito na forma do mesmo artigo 51, IV. Desse modo, o estabelecimento em nenhuma hipótese pode vender, doar ou se desfazer do produto, sob pena de responder civil e criminalmente por tal ato. Mas o estabelecimento pode cobrar pela estadia da coisa que está sob sua guarda, a contar do prazo estipulado para a retirada após o reparo.

Caso o consumidor, notificado para retirar o produto, ainda assim permaneça inerte, como não há qualquer previsão legal sobre esse aspecto no Código de Defesa do Consumidor, pode se utilizar, por analogia, o regramento geral do artigo 746 do Código de Processo Civil, que traz o procedimento das coisas vagas, usado para as situações prevista no instituto da descoberta, em Direito Civil.

O novo Código de Processo Civil dispõe que, recebida a coisa por autoridade policial, esta a remeterá em seguida ao juízo competente. Logo após, depositada a coisa, o juiz mandará publicar edital na rede mundial de computadores, no site do tribunal a que estiver vinculado e na plataforma de editais do Conselho Nacional de Justiça ou, não havendo site, no órgão oficial e na imprensa da comarca, para que o dono ou o legítimo possuidor a reclame, salvo se se tratar de coisa de pequeno valor e não for possível a publicação no site do tribunal, caso em que o edital será apenas afixado no átrio do edifício do fórum. Se o consumidor, mesmo intimado, não retirar o produto ou não quiser pagar a dívida, o bem vai a leilão, podendo o estabelecimento adjudicar o produto, depositando a diferença.

Outra solução possível é entender que entre fornecedor e consumidor ocorre um verdadeiro contrato de depósito previsto nos artigos 627 e seguintes do Código Civil. Pelo contrato de depósito, recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame. Nesse caso, ao depositário será facultado, outrossim, requerer depósito judicial da coisa, quando, por motivo plausível, não a possa guardar, e o depositante não queira recebê-la.

O certo é que qualquer uma das soluções não é prática do ponto de vista do fornecedor. Pegue-se um exemplo concreto: imagine uma assistência técnica que possua milhares de aparelhos não reclamados que muitas vezes são deixados lá exatamente por não terem mais valor financeiro. Esses aparelhos que lotam os depósitos dos estabelecimentos teriam que ter uma destinação judicializada? Os fornecedores teriam que ajuizar milhares de ações judiciais para se desfazer, em sua maioria, de sucata tecnológica com pouquíssimo valor. Além disso, a solução agora seria lotar os já lotados depósitos judiciários?

Esse tópico merece uma atenção especial do legislador, pois, se um dispositivo de lei determinasse as consequências da não retirada do produto no prazo estipulado entre as partes, isso eliminaria a controvérsia que paira a respeito.

Recentemente, a Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados aprovou uma proposta (PL 4.668/2016) que estabelece um prazo de 180 dias para a retirada, pelo proprietário, de equipamentos eletrônicos, máquinas e motores deixados na assistência técnica para conserto. Segundo o texto da proposta, o prazo para retirada começará a contar da data do contato do estabelecimento comunicando o conserto ou sua impossibilidade; em caso de não retirada do equipamento, o prestador de serviço ficará autorizado a alienar, doar, reutilizar, desmontar, destruir ou destinar o bem à sucata.

O projeto também prevê que o fornecedor deverá notificar, por escrito, após 90 dias, o consumidor para a retirada do produto por aviso de recebimento ou outro meio hábil. A medida está prevista em um texto substitutivo apresentado pelo deputado Rodrigo Martins (PSB-PI) aos projetos de lei 4.668/16, do deputado Francisco Floriano (DEM-RJ), e 4.920/16, do deputado Heitor Schuch (PSB-RS), que tratam do assunto e tramitam em conjunto. O substitutivo reúne o conteúdo das duas proposições. O projeto tramita em caráter conclusivo e será analisado ainda pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Prática bastante comum no comércio, principalmente de eletrodomésticos, é a da garantia estendida. O fornecedor oferece para o consumidor a extensão do prazo de garantia, mediante pagamento de um valor.

Tal garantia estendida não traz nenhuma vantagem para o consumidor, tendo em vista o critério de vida útil do bem. Com esse critério, o vício oculto pode surgir dois ou três anos depois de adquirido o produto e, mesmo assim, o consumidor terá direito de reclamar o problema. O CDC já oferece proteção adequada a esses casos. É o que está disposto na recomendação formulada em 28/11/2012, pela Associação Nacional do Ministério Público e Defesa do Consumidor (MPCON)[4].

Recentemente, o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) editou a Resolução 269, de 28 de outubro de 2013, que dispõe sobre contratação da garantia estendida. A referida resolução determina que a contratação da garantia estendida é facultativa e não pode ser oferecida de forma “casada” com outros produtos (artigo 13). Também disciplina que o consumidor tem o prazo de sete dias corridos da assinatura da proposta para desistir do seguro da referida garantia.

Em um julgado de 2015, no STJ, no REsp 1.411.136/RS, o relator Marco Aurélio Bellizze entendeu que aparelhos que apresentam vícios dentro do prazo legal de garantia devem ser entregues pelo consumidor nos postos de assistência técnica, e não nas lojas onde foram comprados, a menos que o serviço de reparação especializada não esteja disponível no município. Para a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, esse entendimento reduz a demora na reparação do produto com vício e também os custos para o consumidor.

Todavia, apesar desse recente entendimento apresentado pelo STJ, esse não nos parece ser o caminho mais adequado para esses casos. Aqui, concorda-se com o posicionamento do Ministério Público do Rio Grande do Sul, que determinou ao lojista encaminhar o produto ao fabricante ou à assistência técnica, mas infelizmente essa tese foi vencida no julgamento. Ao prevalecer o entendimento disposto nesse julgamento, o STJ dificultou ainda mais a vida do consumidor que acabou de adquirir um produto novo. Grande parcela dos consumidores das grandes cidades brasileiras será a mais prejudicada por essa interpretação, já que a maioria dos fornecedores possui assistência técnica nos grandes municípios brasileiros.

O problema que se encontra nesse entendimento é que as despesas do envio do produto para a assistência técnica serão suportadas pelos consumidores, daí não havendo redução de custo nenhum conforme aponta o julgado. Muitas dessas assistências têm uma localização de difícil acesso, e o consumidor, já bastante penalizado com o produto que deveria funcionar de formar adequada, agora terá que arcar também com os custos de envio do produto para a assistência técnica. Parece-nos que esse entendimento afasta a figura do lojista (vendedor) da figura do fabricante, o que em momento algum é previsto pelo CDC — aliás, o Código de Defesa do Consumidor, ao estabelecer a responsabilidade solidária, prevê exatamente o contrário.

Desse modo, continuamos defendendo a tese de que o envio do produto para a assistência técnica deve ser suportado pelo fornecedor, e não pelo consumidor, até mesmo nos municípios onde o fabricante possua uma filial. Não se nota nenhum benefício para o consumidor nesse caso como aponta o referido acórdão.

Em mais recente julgado, no REsp. 1.634.851, a relatora, ministra Nancy Andrighi, afirmou que, “como a defesa do consumidor foi erigida a princípio geral da atividade econômica pelo art. 170, V, da Constituição Federal, é ele — consumidor — quem deve escolher a alternativa que lhe parece menos onerosa ou embaraçosa para exercer seu direito de ter sanado o vício em 30 dias — levar o produto ao comerciante, à assistência técnica ou diretamente ao fabricante —, não cabendo ao fornecedor impor-lhe a opção que mais convém”.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2018-jun-09/julio-oliveira-garantia-produto-retirada-assistencia-tecnica